Esta é uma posição pessoal derivada de mais de vinte anos de experiência na produção de quadrinhos no Brasil e no exterior, e da minha observação da realidade atual da produção de quadrinhos no Brasil.

O valor pago por página, partindo do roteiro pronto, não permite que nos profissionalizemos. E a impressão que eu tenho é que estamos num caminho cada vez mais insustentável.

O trabalho de ler um roteiro, transformá-lo em um storyboard, desenhar, finalizar o desenho, colorir e letreirar é caro. É um trabalho que requer anos de estudos de várias disciplinas, pesquisa, prática e tempo de execução, que conjuga processos intelectuais e artísticos altamente especializados para resultar, no final, num produto único sobre o qual será auferido lucro.

Os valores pagos de modo geral no mercado brasileiro não cobrem sequer a primeira parte desse trabalho, e é importante que os/as quadrinhistas estejam cientes disso desde cedo. Não para que desistam, mas para que pensem, por exemplo, em estratégias de:

– valorização dos seus trabalhos desde o início da carreira;

– planejamento de carreira no longo prazo, pois nossa aposentadoria depende só de nós;

– educação de profissionais ligados à produção de quadrinhos quanto a todas atividades que desenvolvemos, e o quanto elas nos custam em termos de formação e tempo de trabalho;

– estabelecer diálogos com instituições financiadoras de editais de artes e cultura no sentido de aumentar os montantes destinados a projetos de quadrinhos.

Nós somos apaixonados pelo que fazemos, até em detrimento dos nossos próprios interesses. Mas não é por isso que temos que nos deixar convencer a comprometer meses de nossa dedicação por qualquer um que acene, de boa ou má fé, com um valor que não paga nem a caneta que usamos. A matemática tem que nos puxar de volta à Terra.

Vou dar o meu exemplo: se me oferecem fazer um projeto a, digamos R$ 300,00 por página, e na minha tabela de ilustrações eu posso ganhar R$ 300,00 fazendo uma ilustração A4 só a lápis, por que eu faria uma página, que demora dias? Por que eu escolheria ganhar R$ 300,00 em, pelo menos, uma semana de trabalho (leitura de roteiro, storyboard, desenho, cor, letras… pra nem contar as alterações e trocas de email), que daria R$ 42,85/dia, se eu posso ganhar R$ 300,00/dia com uma ilustração? Em um dia eu termino uma ilustração de R$ 300,00 e no outro ainda faço mais uma no mesmo preço. O meu tempo de trabalho tem muito mais valor com a ilustração, entendem? Até porque sobra pra pegar outros projetos de ilustração ou então trabalhar em projetos pessoais.

Sejamos específicos. Coloquemos números nas coisas.

Esse cálculo pode ser feito de várias outras formas, mas eu prefiro a simplicidade. Os números me dizem claramente que não tenho como aceitar a maioria dos projetos de quadrinhos que me são oferecidos, e essa clareza matemática me libera para buscar alternativas que realmente sejam sustentáveis, como editais de cultura e patrocínios através de leis de incentivo. Nenhum dos dois caminhos é fácil, mas é cristalino que só eles vão me dar fôlego para realizar os meus projetos de forma financeiramente viável no longo prazo. Por que eu quero produzir quadrinhos por muito, muito tempo. Não quero ter que bater na rua da amargura e me juntar ao grande coro dos que dizem que não dá pra viver de arte nesse país. Isso é mais do mesmo, isso é não mudar nada, é continuar tudo como está, e precisamos ir pra frente, abrir novos caminhos.

Por isso, meu modelo hoje é financiar meu trabalho de HQ autoral com meu trabalho de ilustração, curadoria e ensino pois simplesmente não compensa produzir uma HQ com páginas a R$ 300,00. Também corro atrás de editais e patrocínios de empresas, que permitem me pagar um preço decente por página mas também contratar uma série de outros profissionais, fazendo o dinheiro circular na nossa economia.

Nós, artistas, sabemos o trabalho que viemos fazer neste mundo. O nosso grande desafio é sobreviver fazendo ele. Precisamos ter estratégia, cálculo, clareza de visão! Precisamos saber negociar, precisamos montar modelos de negócio que sejam sustentáveis, precisamos saber o valor do nosso trabalho e se realmente queremos vender ele por tão pouco. Cada um de nós tem as suas circunstâncias muito variadas, mas eu deixo aqui esse apelo: você quer que o trabalho que você ama seja sustentável? Fazer storyboard, desenhar e pintar uma página é uma alegria, mas por quanto tempo você acha que consegue fazer isso e pagar suas contas? Se isso é importante para você, ponha o lápis no papel. Não é um despertar fácil, mas é salutar. E quanto antes você fizer isso, melhor.

P.S.: Minha sugestão de piso de preço de página colorida que acho que todos os quadrinhistas brasileiros deveriam ganhar: R$ 650,00.

É isso.

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