Nas minhas pesquisas de arquivo para descobrir mais sobre os becos de Porto Alegre e as grandes reformas urbanas que os transformaram em avenidas amplas, descobri, numa edição do Correio do Povo de 1927 uma curiosa reportagem sobre um escândalo envolvendo o Instituto Nacional de Música. Nele, era mencionado um ‘maestro’ que teria falsificado sua data de nascimento para concorrer ilegalmente a uma viagem de estudos à Europa. Sua rival, então, era a jovem porto-alegrense residente no Rio de Janeiro, a maestrina Joanídia Sodré. Neste trecho da reportagem, lê-se:
“Quem é a maestrina Sodré?[1]
A senhorita Joanidia Sodré, brilhante e festejada maestrina conhecida em varios pontos do Paiz e no extrangeiro e concorrente ao premio de viagem á Europa, instituido pelo governo federal, é porto-alegrense, nascida á rua dos Andradas, nos altos do edificio occupado actualmente pela Photographia Ferrari.
Conta actualmente 22 annos de idade, sendo filha do dr. J. Sodré Filho, cirurgião em Nictheroy, e sobrinha do dr. Elizario Nuñes, juiz de comarca de Rio Pardo. Em viagem de recreio, esteve nesta capital com 17 annos apenas, em março de 1922, tendo dado importante concerto, no Salão Leopoldina, offerecido ao dr. Borges de Medeiros, presidente do Estado, e com grande assistencia.
Depois, foi a Montevidéo, e Buenos Aires, onde recebeu muitas homenagens e applausos, na sua brilhante audição realizada no salão do Atheneu.
Em maio de 1924, obteve o título de maestrina, a primeira no Brasil, sendo a única senhorita em nosso paiz com o titulo de cathedratica do Instituto Nacional de Musica.”
Nunca tinha ouvido falar dela, mas fiquei encantada ao descobrir que ela foi a primeira maestrina brasileira. Segundo Ermelinda Paz, Joanídia Nuñes Sodré “começou a estudar piano e aprender as primeiras notas com sua mãe [Leonídia Nuñes Sodré]”[2]. Contudo, a autora continua,
A necessidade de implementar estudos mais sérios, visando um direcionamento mais eficiente da pequena Joanídia pelo mundo da música, fez com que seus pais se transferissem de Porto Alegre e fixassem residência em Campos, município do Estado do Rio de Janeiro[3].
Posteriormente, estabeleceram-se em Niterói para facilitar os estudos da filha na então capital federal (cidade do Rio de Janeiro). Aí, fez estudos marcados pela excelência, tendo sido aluna do famoso compositor brasileiro Alberto Nepomuceno e “concluiu seu curso com brilhantismo em 1924, com apenas 21 anos, tornando-se então a primeira mulher a galgar o posto de maestrina”[4]. Tão jovem, Joanídia já era professora de música, e em 1927 concorria a uma viagem de estudos à Europa, promovida pelo Instituto Nacional de Música. Em edição do Correio do Povo datada entre julho e agosto daquele ano, o concurso vira notícia em função da descoberta de que o maestro Assis Republicano, com quem Joanídia disputaria o prêmio, havia vindo a Porto Alegre afim de falsificar sua data de nascimento para atender às exigências do edital. Segundo a reportagem,
Da capital da Republica, chegam-nos noticias de um grande escandalo no Instituto Nacional de Musica, em virtude de Assis Republicando ter vindo, exclusivamente, a Porto Alegre para prejudicar a maestrina rio-grandense senhorita Joanídia Sodré, no concurso mais importante daquelle Instituto, como seja o premio de viagem á Europa para maestros cathedraticos brasileiros, no qual somente podem concorrer os menores de 30 annos de idade.
Os dois unicos concorrentes ao premio de viagem eram a senhorita Joanidia Sodré e o sr. Assis Republicano, sendo que elle não poderia tomar parte no concurso por contar 37 annos de idade.
Segundo a pesquisadora Dalila Vasconcellos de Carvalho, Joanídia teria vencido o concurso, pois “a viagem de Joanídia para Alemanha foi o prêmio que recebeu por ter ganhado o concurso de composição em 1927 promovido pelo Instituto Nacional de Música, do qual ela já era professora de solfejo desde 1925”[5]. Por sua vez, Ermelinda Paz traz detalhes do concurso:
Ainda em 1927, submeteu-se às provas do concurso ‘Prêmio de Viagem à Europa”, com o fim de obter uma bolsa para estudos avançados. A prova final constava de uma composição sobre tema escolhido, permanecendo o candidato incomunicável. Como resultado de 20 horas consecutivas de trabalho, que foi realizado numa das salas do Instituto Benjamin Constant, surgiu a obra lírica em um ato, denominada ‘Casa Forte’, sobre libreto de Goulart de Andrade[6].
Consta que, uma vez na Alemanha, Joanídia regeu a Orquestra Filarmônica de Bonn e “[…] fez também curso de regência, prática de direção sinfônica e de ópera com o compositor e maestro polonês Ignatz Waghalter (1881-1949) na hoje denominada Deutsche Oper de Berlim”[7].
Em seguida, continua Carvalho, “[…] fez sua estreia como regente no Brasil, em 17 de julho de 1930, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro […]”[8], “sendo provavelmente a primeira mulher a realizar o feito de reger uma orquestra sinfônica no Teatro Municipal”[9].
É interessante notar que Dalila Vasconcellos de Carvalho analisa também a forma com que uma mulher chegou a atuar num ramo das artes tipicamente masculino, afirmando que “[…] a regência era uma prática associada à figura dos compositores e, como tal, predominantemente masculina. De modo que o surgimento de uma mulher regente era um fato duplamente raro em um contexto de escassez de candidatos ao posto”[10]. A maestrina tinha, então, o desafio de se colocar num papel ambíguo, e que, como demonstra Carvalho, fica patente nas críticas jornalísticas que recebia: como conciliar a socialização “feminina”, que prima pela valorização do recato, do ocultar-se social e profissionalmente, com o reger de uma orquestra, que exige autoridade, exposição e liderança?
O ato de reger produziu um paradoxo para a maestrina, pois se reger é conduzir através de expressões corporais, é também colocar em risco a moralidade do corpo feminino subvertendo o jogo social. Não surpreende que Joanídia seja louvada justamente por conservar sua discrição corporal em detrimento do exercício da autoridade e do poder que o posto de regente exige[11].
E acrescenta que
Mesmo estando altamente qualificada para se candidatar ao posto de regente, considerando que os principais maestros da época aprenderam a reger na prática, sem qualquer outro curso ou formação específica para o posto, Joanídia foi recebida com muitas reservas pelos críticos, que não deixaram de sublinhar o quão excepcional era uma mulher reger uma orquestra sinfônica no Teatro Municipal do Rio de Janeiro[12].
De fato, apesar da sua carreira brilhante, Joanídia procurava oportunidades para reger, mas não era fácil encontrá-las. Quis mesmo assumir a disciplina de regência no Instituto Nacional de Música, em 1931, mas foi preterida pelo diretor, que na ocasião preferiu contratar um ex-aluno da instituição recém regressado da Europa.
De qualquer forma, a maestrina encontrou no 2º Congresso Feminista, em 1931, a oportunidade para brilhar conduzindo a execução de peças de compositoras:
[…] regeu pela segunda vez a orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos que organizou um concerto em homenagem ao 2º Congresso Feminista, em 27 de junho de 1931. Aproveitando-se da ocasião a maestrina apresentou pela primeira vez obras das compositoras francesas Cécile Chaminade (1857-1944), Augusta Homès (1847-1903), da inglesa Ethel Smyth (1858-1944) e da brasileira Branca Bilhar (1886-1928).[13]
Ainda segundo Carvalho, “[…] Joanídia foi a primeira mulher a se tornar diretora da escola de música entre 1946-1967, e, mais tarde, a primeira reitora da universidade na década de 1960”[14]. Na década de 1950, sua permanência como diretora da Escola Nacional de Música começou a gerar conflitos, tendo um grupo de desafetos escrito um manifesto ao então presidente da República Café Filho para que a afastasse do cargo. Em resposta, a maestrina mandou publicar, em periódico da época, a resposta: “FAÇAM CONCURSO E INGRESSEM NA CONGREGAÇÃO DA ESCOLA, SE QUISEREM INFLUIR NA SUA VIDA”[15].
A primeira maestrina do Brasil faleceu em 7/9/1975. Pelo que pude levantar, fez uma carreira de excelência na história da música brasileira, mas parece estar esquecida neste início de século XXI. Abaixo, uma de suas obras executadas pelo conjunto Kaleidos:
EDIT: Segundo o pesquisador Cláudio Remião (UFRGS), a historiografia de modo geral costuma considerar a compositora Chiquinha Gonzaga como primeira maestrina brasileira, por já ter regido conjuntos orquestrais. Contudo, esse é um ponto que merece ser investigado mais a fundo, uma vez que Joanídia teria sido a primeira com formação específica a reger grandes orquestras.
Referências:
CARVALHO, Dalila Vasconcellos de. Helza Camêu (1903-1995) e Joanídia Sodré (1903-1975): a construção “feminina” de carreiras “masculinas” no universo musical erudito brasileiro. In: Dossiê Expressões Artísticas e Mulheres Arquivos do CMD, Volume 2, N. 2. Jul/Dez 2014. Pp. 38-63.
CARVALHO, Dalila Vasconcellos de. Renome, vocação e gênero: duas musicistas brasileiras. Dissertação de mestrado, USP/FFLCH, 2010. Dis
Um escandalo no Instituto Nacional de Musica. Correio do Povo, jan./jul. 1927. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa de Porto Alegre.
PAZ, Ermelinda A. Joanídia Sodré: As diversas facetas da primeira maestrina brasileira. In: Revista da Academia Nacional de Música, Volume V. Rio de Janeiro: Edição da Academia Nacional de Música, 1994. Pp. 7-20.
[1] Correio do Povo, julho-agosto de 1927. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. A grafia original foi mantida.
[2] Paz, 1994, p. 7.
[3] Paz, 1994, pp. 9-10.
[4] Paz, 1994, p. 10.
[5] Carvalho, 2014, p. 41.
[6] Paz, 1994, p. 11.
[7] Carvalho, 2014, p. 41.
[8] Carvalho, 2014, p. 41.
[9] Carvalho, 2014, p. 38.
[10] Carvalho, 2014, p. 44.
[11] Carvalho, 2014, p. 47.
[12] Carvalho, 2014, p. 42.
[13] Carvalho, 2014, p. 48.
[14] Carvalho, 2014, p. 40.
[15] Paz, 1994, p. 18.
Que lindo post, adorei! Parabéns!
Muito obrigada, Aline! 😀
Interessante artigo.
Muito obrigado por compartilhar!
Obrigada pela visita, André! 🙂