Percorrer a cidade também é percorrer o tempo, e muitas vezes encontramos prédios e espaços de antiguidade insuspeita.
Num caso de rara permanência desde a segunda metade do século XIX, uma edificação do antigo Beco do Rosário pode ser vista ainda hoje. Trata-se de uma construção que tem o seu uso comercial documentado, pelo menos, desde 1888, quando aparece já num anúncio do Anuário do Rio Grande do Sul daquele ano.
Com apenas um pavimento e frente para a rua Marechal Floriano, fronteira à tradicional Praça XV, esta casa provavelmente centenária testemunhou a evolução de uma Porto Alegre muito diferente da que se visita hoje. Já na documentação encontrada em pesquisa realizada no EdificaPOA, em setembro de 2018, as plantas de registro mais antigas disponíveis datam dos anos 1960, nas quais o edifício já é qualificado como “antigo”. Infelizmente, não foram encontradas plantas ou documentos anteriores àquela década, indicando que foram provavelmente perdidos dos arquivos municipais.
Apesar das modificações aparentes hoje, notadamente o chanfro na esquina, esta casa parece conservar as marcas da antiga edificação que se vê em tantas fotografias do antigo Beco do Rosário, hoje a avenida Otávio Rocha: a relativa grande altura para uma construção térrea e em especial a cornija com friso denteado típica da arquitetura neoclássica nas cidades brasileiras do tempo do Império:
Porém, ter sido conhecida como Casa Carvalho provavelmente se deve ao fato de que a Casa Carvalho originalmente localizava-se na esquina oposta do Beco do Rosário, e era um sobrado. Sua demolição para a abertura do beco foi registrada pelo jornal A Federação, e provavelmente após a abertura da avenida Otávio Rocha é que a Casa Carvalho transferiu-se para a edificação de um andar que permanece até hoje.
Na história em quadrinhos, faço uma referência a esse provável marcador das transformações urbanas em Porto Alegre, retratando o sobrado sendo demolido no processo de abertura do Beco do Rosário.
Já na década de 1930, a edificação aparece nas páginas da Revista do Globo, e de um filme curto mostrando a cidade e seus costumes.
Este é um caso bastante raro de uma construção ainda do final do século XIX marcando a entrada de um beco, e que parece permanecer em uso em Porto Alegre até os dias de hoje. Ao seu lado, foi construído na década de 1930 o elegante prédio do Hotel Jung, denotando não apenas no estilo mas especialmente na sua grande altura a tendência de verticalização que passaria a mudar a paisagem da cidade a partir de meados do século XX.
Em termos de história urbana, pode-se dizer que a cidade é como um palimpsesto, ou seja, assim como o pergaminho raspado e reaproveitado para escrever outros textos pelos copistas medievais, também as edificações e espaços da cidade são “reescritos”, ou servem de suporte para usos diferentes daqueles originalmente atribuídos. Resumindo, para alguém que saiba observar, a cidade dá a ver várias camadas do tempo em sua paisagem.
Que máximo, Ana! Realmente incrível! Olhei aqui no levantamento cadastral do final da década de 1920 (Moysés Vellinho), e aparece lá a edificação sob os nºs 88/90 na Marechal Floriano/ 3/5/5a na 24 de Maio, proprietário Fernando Alves Leite, dimensões: 288,75m2 de terreno e área edificada. Ainda sem esta esquina modificada.
Tenho umas fotografias da década de 1970 que aparece o letreiro “Casa Carvalho” na face da esquina (cores da edificação na época: verde claro com detalhes verde escuro).
Mito obrigada! Nossa, eu não cheguei a ver esse levantamento, terias ele digitalizado? E se puderes me mostrar as fotografias que tens da década de 1970, eu poderia atualizar o post com elas e o levantamento, tudo devidamente creditado, é claro!