Anúncio do Clube dos Caçadores. Revista "A Máscara", BNDigital, Ed00005, 1920, p. 4.

“O clube dos alegres caçadores”

Em seu livro de memórias O Grupo: outras figuras – outras paisagens, o jornalista Paulo de Gouvêa traz uma descrição detalhada das sociabilidades que tinham lugar no famoso Clube dos Caçadores, o mais famoso e luxuoso cabaré de Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX.

Centro de diversões destinado exclusivamente aos homens, o Clube dos Caçadores possuía restaurante fino, empregava diversos artistas da música e da dança, tinha salões de jogos e, é claro, era provavelmente servido pelas redes internacionais de tráfico de mulheres, como a passagem a respeito da origem das suas frequentadoras indica.

Ao contrário de seus congêneres mais pobres, o “Caçadores” acolhia figuras políticas de projeção nacional, bem como jornalistas, artistas e escritores. Talvez por isso tenha passado sossegado tantos anos no coração da cidade, na antiga rua Nova, ou a atual General Andrade Neves.

“O clube dos alegres caçadores[1]

Era o Clube dos Caçadores, famoso em todo o Brasil e muito conhecido em Montevidéu e Buenos Aires.

Esse título de ‘clube’ é puro eufemismo. Porque o ‘Caçadores’, tal como o Marly, o Royal e outros de menor categoria, era um cabaré, se é que as gerações mais novas ainda conhecem tal termo. Como a pudibunda moral provinciana da época ficaria chocada pela crueza da horrível palavra, houve apelação para a sinonímia. Daí, cabaré ser chamado de clube, da mesma maneira que pensão de mulheres era ‘maternidade’. Concessões naturais à casmurrice dos eternos envergonhados.

O Clube ficava na Rua Andrade Neves, hoje sede de uma sociedade espírita, mais uma prova de como o destino das coisas, como o dos homens, gosta de fazer suas picardias.

A frequência era das mais finas: muitos políticos, deputados e ricos fazendeiros do interior. Para estes, era ponto de honra a visita. Não podiam chegar aos pagos e ficar desmoralizados perante os amigos ao confessar a absurda omissão.

– Não estiveste nos Caçadores, tchê? Mas que barbaridade! Então, o que é que foste fazer em Porto Alegre?

Aí está: vir à capital e não dar as presenças no cabaré tirava qualquer justificativa à viagem, por mais importante que ela fosse. Por aí vocês vêem como o negócio era sério.

Afora os ‘vips’, havia outros frequentadores de menos dinheiro, mas que o emproado porteiro julgava dignos de ombrearem com os ditos. Muitos homens de jornal, após o estirado plantão da noite, tocavam-se para lá. E também quando não davam plantão.

Havia a sala da roleta e a do ‘bacarat’, sempre cheias, fichas rolando como água em correnteza e a voz dos ‘croupiers’, monocórdia e disciplinada, alertando os jogadores e indicando onde caíra a indisciplinada bolinha: número, cor, par ou ímpar. Ou, então: ‘nove, ganhou a banca’. Das salas do jogo passava-se por uma larga porta para o ponto real de atração e prestígio dos Caçadores: o grande salão, rebrilhando de luzes, com a pista de dança ao centro e, à direita, o estrado com a orquestra regida pelo maestro Roberto Eggers, tudo cercado pelas mesas onde os garçons muito solícitos – onde a gorjeta era boa – serviam as bebidas. Nas mesas junto às paredes, sempre masculinamente escoltadas, sentavam-se as artistas e as bailarinas do salão. Lote muito bem selecionado. Várias procedências e várias nacionalidades – espanholas, francesas, italianas, eslavas, castelhanas e algumas pratas da casa. Seus nomes entremostravam o país de origem. Vejam estes: La Paraguaya (elementar, meu caro Watson), Irmãs Mayerenski, Ratoncito, Perla Volak, Trisca, Hermanas Iris…

Anúncio do Clube dos Caçadores. Revista "A Máscara", BNDigital, Ed00005, 1920, p. 4.
Anúncio do Clube dos Caçadores. Revista “A Máscara”, BNDigital, Ed00005, 1920, p. 4.

Estas Irmãs Iris eram ricas. Solitários chaveiros, braceletes, anéis e brincos que as enfeitavam irradiavam chamas multicores à luz forte dos lustres e dos refletores. Enquanto suas companheiras tinham quartos na pensão da Ninetta Chuderoni (ex-atriz de opereta que não fugiu, como nenhuma delas foge, à sina de ‘mamita’ no fim da vida), las Hermanas tinham casa própria. (Dado o gênero de atividades desenvolvidas por suas ocupantes, devia chamar-se casa imprópria. Mas é assim que se usa dizer).

O notável nas relações de todas essas acessíveis e simpáticas criaturas, que Guido da Verona – ‘Mimi Bluette fiore del mio giardino’ – chamava de ‘sorelline buone della mia gioventù’ – era a maneira cheia de fricotes com que os coronéis (alguns) e os gigolôs (todos) as tratavam; beijavam-lhes as mãos, fazendo leve e fidalga curvatura, como se fossem autênticas princesas. E depois iam dormir com elas.

O salão tinha sua parte artística sob o comando do ‘cabaretier’ Leopoldis. Alinhadão, metido no ‘smoking’ bem talhado, de quando em vez suspendia o embalo da orquestra, batendo palmas para anunciar a artista ou dançar. Os pares docilmente voltavam a seus lugares, a orquestra voltava a funcionar e a cantora também. Palmas, muitas palmas. Depois, as danças na pista, outra vez. Isso se repetia, noite por noite, sem maiores variações.

Leopoldis, como todo cabaretier de alta linhagem, fazia as apresentações em francês. Francês macarrônico, mas francês. (Ele era italiano). E sua macarronice brilhou inteira na apresentação do único artista homem que se viu trabalhar no Clube em muitos anos. Grandalhão de dois andares, com uma voz de pôr abaixo os muros de Jericó, o tenor Francisconi se viu mal para não perder a linha, pois a cabeça grudava-se no teto do pequeno palco.

Leopoldis bateu palmas e, feito o silêncio – que não chamo de silêncio religioso dadas as circunstâncias e o local – mandou no seu francês de araque:

– Messieurs et mesdames. J’aí le plaisir de vous présenter le grand ‘teneur’ Francisconi…

Ele não sabia que tenor, em francês, é tenor mesmo. ‘Teneur’ é coisa muito diferente.

A inclusão de Francisconi na lista de cachês se deveu à generosidade do dono da casa, Luiz Alves de Castro – o famoso Lulu dos Caçadores, aliás, pródigo em tal prática. Chegara o gringão a Porto Alegre e não conseguira um só contrato. Ficou sem dinheiro até para o café da manhã. Atordoado, foi bater às portas acolhedoras do dono dos Caçadores que, com pena dele, mandou-o cantar por uma temporada. Foi a salvação do grande ‘teneur’.

Luiz Alves de Castro tinha um fraco pelas rodas de gente importante. Babava-se todo quando, uma vez que outra, tinha a suprema ventura de passear na Rua da Praia ao lado de um ou de uns ilustres figurantes da Política e outros mandões.

Era a sua hora de glória, embora dissessem os maldizentes que ela custava um bocado de dinheiro ao Lulu. É que os ilustres senhores que o honravam publicamente com a sua ilustre companhia nunca se lembravam de pagar os polpudos vales que assinavam em troca das fichas de jogo. Caso evidente de amnésia, já se percebe.

Veio depois a Revolução que levou Getúlio ao poder. Novos tempos, nova gente, novos costumes. Lulu encontrou uma chance de brilhar a seu modo na Capital da República. Tomou conta do Cassino da Urca (A, E, I, O, Urca…) e deixou-se ficar na Cidade Maravilhosa. Muitos anos depois, veio a morrer, como morreu seu Clube, hoje transformado em seu inesperado antípoda, cheio de preces, passes e receitas homeopáticas.

Sic transit gloria mundi. O que é uma verdade, tanto em latim como em português.”

Leia mais sobre o Club dos Caçadores aqui.

Referências:

[1] GOUVÊA, Paulo de. O grupo; outras figuras – outras paisagens. Porto Alegre: Movimento/Instituto Estadual do Livro, 1976. P. 104-106.

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