Os cabarés – típicos lugares de sociabilidades masculinas e que caracterizam a modernidade urbana – eram, sem dúvida, frequentados pelos poderosos coronéis das estâncias e da política, mas também por profissionais liberais como artistas, jornalistas e poetas. Nestas últimas duas categorias se enquadrava Theodemiro Tostes (1903-1986) que ilustra, nesta crônica, diversas cenas e personagens do quotidiano de um cabaré: o velho coronel rico que se desespera com o dispêndio nas bebidas e na companhia, o rapaz bonito mas ingênuo que perde a companhia da prostituta para o homem mais rico (e não tão bonito), as francesas, o tédio.
Todos esses personagens e cenas compunham o cenário urbano noturno moderno, em que os amores e o dinheiro se poderiam ganhar no jogo, e onde a iluminação elétrica garantia noites sem sono a quem quisesse. A cidade não parava, era internacional na figura de suas francesas, que, como sugere Érico Veríssimo[1], educavam com suas maneiras europeias os rudes porém ricos estancieiros que visitavam a capital – e seus bordéis de luxo.
A crônica Cabaré foi publicada originalmente no volume Bazar pela Livraria do Globo, em 1931.
“Cabaré[2]
A champanha explodiu na cara do coronel.
– Mon p’tit chou, mia a madama, felinamente lânguida, e faz cosquinhas amorosas na papada do velho.
O coronel se abstraiu no solilóquio interior dos pagantes. A rosácea das lâmpadas no teto abre uma festa de reflexos no espelho do seu crânio liso. E ele olha as garrafas perfiladas com o olhar de Napoleão diante das tropas de Blücher.
Cada garrafa explode, como um obus enérgico, na alma do coronel.
***
O rapazola milongueiro, gelatinosamente, se derrete num tango.
Cumparsita.
A voz dele se alonga na banalidade melosa da canção. E a sala toda bebe a garapa musical na mais açucarada das emoções estéticas.
O rapaz milongueiro parece ter guardado o coração entre as ancas. No reboleio do corpo a gente sente que ele vibra.
***
O moço louro fez um gesto. Ela veio ondulando o vestido negro, perfeitamente Pola Negri. Sentou-se à mesa e, como ele insistisse, pediu uma Guaraná. Foi a primeira decepção daquela noite malfadada.
Depois, a cretinice literária:
– Sabe? Nunca vi dois olhos tão estranhos como os seus. Você tem um jeitinho arisco de gazela. Se eu ilustrasse o Cântico dos Cânticos, você seria a Sulamita…
– Quem?
– A Sulamita. Uma senhora que esgotou o repertório de imagens poéticas do velho rei Salomão…
Ela exibiu, escandalosamente, um dentinho de ouro e gracejou:
– Comigo não, Salomão…
O rapaz ficou lívido. Não tanto pela frase como pelo dente de ouro. Compreendeu.
– Pensei que você fosse uma mulher diferente das outras. Me enganei.
Ela bisou a exibição do dente:
– Diferente? Ora e essa! Por que motivo eu seria diferente das outras? Que besteira! Você queria que eu fizesse fé com a sua carinha de gigola e desprezasse o coronel? Queria? Pois eu lhe digo que não é possível. Ninguém vive de amor, nem de frase bonita. A dona da pensão só acredita nos dólares. E você, meu amigo, é do gênero Guaraná…
– Que quer dizer com isto?
– Guaraná… uma mulher que se senta com você não pode desejar mais do que Guaraná. Ao passo que aquele gordo que está ali é do gênero champanha. Uma mulher com ele defende a casa e o resto…
– O resto?… Pode ser… Em todo o caso, se você aceita uma champanha…
– Gracias. Guarde o dinheiro e não me queira mal. Champanha, aqui no caso, não é bebida, é símbolo. E você é demasiadamente poeta para pertencer ao gênero daquele senhor gordo.
Neste caso…
– Ciao. Talvez uma noite em que não haja champanha, meu amigo.
E a Sulamita, mansamente, deu o fora naquele ingênuo Salomão.
***
O homem-platéia encorujou num canto a sua melancolia. Cisca no chão do cabaré uma emoção compensadora para aquela noite de chuva. Francesinhas[3] de climas diferentes fazem punguismo em cima das ingenuidades coronelícias. Gastando as suas reservas de palavras carinhosas para a anestesia das facadas.
***
Cabaré. Há sujeitos que gastam um dinheirão para aborrecer-se coletivamente. Os homens estabelecem concentrações de tédio para chupar o narguilé do quotidianismo irremediável. Vitrinazinha de ingênuas libertinagens. De byronismos provincianos. E de esplins[4] bem vestidos.
Cabaré. Laboratório experimental para uso dos psicólogos desocupados”.
Referências:
[1] VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento, parte III: O arquipélago, vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. P. 150.
[2] TOSTES, Theodemiro. Bazar e outras crônicas. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva: IEL, 1994. P. 185-187.
[3] Provavelmente o autor se refere às mulheres de diversas nacionalidades europeias que eram traficadas para as Américas como francesas afim de trabalharem como prostitutas nos cabarés.
[4] Do inglês spleen, denotando sentimento de melancolia, tédio, enfado.