O antigo Beco do Jacques ainda está lá. Ele mudou, é claro, mas hoje atende por Rua 24 de Maio, uma curiosa passagem em escadarias entre a rua Duque de Caxias, a avenida André da Rocha e a rua Avaí (fig. 1), perfazendo um trajeto acidentado na vertende sul do relevo do centro histórico de Porto Alegre. Esse tipo de localização e relevo do Beco do Jacques é o mesmo de diversos outros becos da região, característicos do urbanismo colonial português.
O curioso aqui é que o antigo Beco do Jacques liga não duas ruas principais, como é o caso do Beco do Poço, por exemplo, mas uma rua principal e um outro beco: a antiga rua da Igreja (Rua Duque de Caxias), o antigo Beco do Oitavo (atual Avenida André da Rocha) e ainda o antigo beco do Firme (atual Rua Avaí) (fig. 2). Esse trajeto é assim descrito por Coruja (1881): “da rua da Igreja quase em frente a do Rosário seguia um beco estreito e ladeirento cujas casas também se contavam por unidades.[…]”1 Ter poucas casas é um traço comum a outros becos na primeira metade do século XIX, quando Porto Alegre ainda era uma pequena cidade. Além disso, a encosta sul da cidade em que o Beco do Jacques se encontra sempre foi menos povoada que a encosta norte. Outra característica dos becos que o autor ressalta é a sua forma: “estreito e ladeirento”. Vários outros becos de Porto Alegre são descritos assim também.
O Beco do Jacques também teve outros nomes. Na planta de 1839, aparece como “Beco da Fonte”, mas, ainda segundo Coruja (1881), este nome não teve aceitação suficiente para se popularizar: “existe entre os registros municipais o Beco da Fonte, nome que nunca foi conhecido porque conhecido só foi o Beco do Jaques, por ter aí morado quase durante a sua vida o escrivão Francisco Jacques Neves.”2 Achylles Porto Alegre (1940) também nota essa duplicidade de nomes: “O primeiro [beco da Fonte] lhe veiu por ter ahi existido uma fonte, de logradouro publico, e o segundo [beco do Jacques] por que ahi residiu por longos annos o escrivão Francisco Jaques Neves”.3
Coruja (1881) reafirma, em passagem posterior, a presença daquele funcionário público como um dos moradores do beco:
Este beco, que não tinha então casas laterais, tinha nos arquivos da câmara o nome de beco da Fonte, mas depois que lá embaixo foi morar o escrivão de ausentes Francisco Jaques Nicós, ficou geralmente conhecido por – Beco do Jaques. Hoje tem a placa de Bento Gonçalves, nome que tendo outrora ecoado por toda a província e for a dela, se acha hoje amesquinhado nas placas de um estreito beco! Será ironia?4
De fato, tem-se aqui também o beco, espaço da cidade textualmente descrito como marginal e “mesquinho”, intimamente associado a um personagem notável da vida pública do século XIX.
Achylles Porto Alegre (1940) descreve em detalhes o escrivão Jacques, de que se pode destacar as seguintes passagens:
“Abriu os olhos á luz da vida, na mesma casinha, em que morreu, no becco do Jacques.
Nessa época, o sítio em que morava era um deserto áspero e de difficil accesso para a cidade, como o é ainda hoje, apesar de melhorada a viella.
Era uma pequena chacara, que herdara de seus paes e que elle cultivara com as suas próprias mãos.”5
Nota-se a menção à palavra “casinha” para descrever o tipo de habitação em que o escrivão Jacques morava, além do fato dele ter passado toda a sua vida neste beco, contribuindo para associar o seu nome ao lugar. Da mesma forma, o termo “pequena chácara” faz pensar no típico loteamento colonial português, caracterizado por terrenos estreitos e profundos, em cujos quintais se fazia cultivo de subsistência. A descrição do beco como “deserto áspero e de difficil accesso para a cidade” condiz com a associação dessas vias a percursos acidentados e, em especial na encosta sul do antigo centro histórico, com sua baixa ocupação e urbanização.
Com a abertura do antigo beco do Oitavo (atual avenida André da Rocha) em 1937, instalou-se escadarias ao longo do beco do Jacques, bem como um pórtico na sua esquina com a avenida (fig. 3). Na atualidade, as escadarias se mantém, só que com guarda-corpos metálicos. Quase todas as moradias desta rua foram substituídas por edifícios modernos, mas algumas persistem, quiçá dos seus tempos de beco.
Referências:
1 CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas; reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983. p. 122.
2 CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas; reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983. p. 17.
3 PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre. . Edição organizada por Deusino Varela para as comemorações do bicentenário da cidade e officialisada pela Prefeitura Municipal. Porto Alegre, 1940. p. 15.
4CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas; reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983. pp. 122-123
5PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre.Edição organizada por Deusino Varela para as comemorações do bicentenário da cidade e officialisada pela Prefeitura Municipal. Porto Alegre, 1940. pp. 198-199.