"A cidade á época em que surgiu o Correio do Povo". Correio do Povo, 01/10/1930, p. 10. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho. Detalhe.

“A Cidade á época em que surgiu o ‘Correio do Povo'”

Celebrar a cidade e sua história não é exclusividade dos nossos tempos! Há quase  cem anos, o jornal Correio do Povo aproveitava a ocasião de seu próprio aniversário para relembrar como era a Porto Alegre de 1895. Lembrando a cidade como colonial portuguesa, a matéria traz fotografias do final do século XIX e celebra a o desenvolvimento “vertiginoso” da cidade nas primeiras décadas do século XX. Creio que o que pode fazer sorrir quando pensamos na Porto Alegre de 1930 comparada à de hoje, são apenas testemunhos sinceros do espanto, deslumbramento e às vezes estranhamento das pessoas diante da profundidade das mudanças que presenciavam na paisagem urbana.

“A Cidade á época em que surgiu o ‘Correio do Povo’[1]

Que era Porto Alegre em 1895? – Reminiscências de uma época ingenua e patriarcal – Costumes e tradições que desappareceram – Aspectos e recordações de 1895 – a metamorfose da capital

O ‘Correio do Povo’ acompanhou, identificado, ‘pari passu’, o desdobramento vertiginoso da cidade

Em outubro de 1895, não apenas a cidade, mas todo o Rio Grande vivia, ainda sob a vibraçãonervosa do periodo revolucionário, cujas recordações estavam ainda bem nítidas.

Os jornaes, como as palestras de rua ou de casa, sofriam, ainda, o influxo das horas amargas por que havia passado o Estado. Caldas Junior compreendeu, com extraordinária lucidez, o momento e soube imprimir á folha que lançava – o ‘Correio do Povo’ (1º de outubro) – a orientação que a faria rapidamente vitoriosa.

O jornal para o momento

A população da cpital e do interior anhelava por uma gazeta que fosse, ao mesmo tempo, um instrumento seguro de informações honestas e uma distracção do espirito. É que todos sentiam a necessidade de espairecer dos dias de apreensões ainda recentes.

Foi o que com uma invulgar sagacidade, soube fazer Caldas Junior.

O ‘Correio do Povo’, de 1895 é o espelho fiel da sua época.

Porto Alegre em 1895

Que era Porto Alegre quando a iniciativa de Caldas Junior, Mario Totta, Paulino de Azurenha e alguns outros, lançou o primeiro numero do ‘Correio do Povo’?

Uma cidade colonial e pittoresca, mas apenas nebulosa do que viria a ser menos de meio século depois.

O movimento urbano circumscrevia-se á rua da Praia, entre praça da Alfandega e rua Marechal Floriano.

A antiga rua da Graça – que tal foi o primeiro nome da rua dos Andradas – não era, ainda, a rua moderna de hoje.

Os antigos e pesados sobrados de dois andares, com beiraes e jacarés[2], eram os alterosos edifícios da nossa principal artéria.

O COLOMBO de hoje

Era, então, uma casa de esquina de um só pavimento, onde […]onava um armazém de seccos e molhados.

Defronte, onde hoje está o Nacional, se localizava a Livraria Americana num prédio também baixo.

Ali, como hoje, era o ponto de maior affluencia da cidade.

Á tarde, os elegantes faziam ponto de parada ali, para ver passar as moças que eram, naquella época, o que são hoje, as suas netas: figuras da sociedade porto-alegrense.

Curiosidades de Porto Alegre de então

O perímetro urbano da capital era, então, muito pequeno.

A rua da Independencia ia até a praça Julio de Castilhos.

Dahi para diante era matto, onde aos domingos, famílias inteiras faziam pic-nic.

A rua da Indepedencia, porém, não era nem uma pallida sombra do que hoje é. De longe em longe, um predio.

Basta lembrar que a esquina, hoje, da rua Barros Cassal com Independencia, face norte, era o morro do Carneiro, cuja fralda era hoje a rua Christovão Colombo.

Tambem o terreno onde se encontra hoje o Apollo[3] era um morro abandonado.

A Redempção era um pantanal onde, no inverno, os caçadores logravam caçar marrecões.

No trecho fronteiro á rua Lopo Gonçalves estava o ‘cemiterio dos cachorros’. Era um pequeno trecho da Varzea onde eram sepultados os cães que morriam na cidade.

A Colonia Africana, hoje bairro Rio Branco, era, igualmente, um espesso mattagal muito visitado pelos caçadores de pequenos pássaros.

Arrabaldes

O arrabalde mais populoso da cidade era o Menino Deus.

Moinhos de Vento, como dissemos, era, por aquelle tempo, floresta propicia aos passeios dominicaes.

Os Navegantes não haviam ainda perdido, totalmente, o antigo caracter do Caminho Novo e da Costa do Rio.

O Parthenon era o segundo arrabalde em população e importancia. Era, tambem, um recanto perdido da cidade.

Prados

Quatro eram os prados que funcionavam, regularmente, em Porto Alegre: o dos Moinhos de Vento, único sobrevivente, e dos Navegantes, o Rio-Grandense, no Menino Deus o Boavista, no Parthenon.

A corrida de cavalos era um dos sports predilectos da população. Não se conhecia, então, ainda, o foot-ball, em Porto Alegre, que foi trazido por um team da cidade do Rio Grande, que visitou Porto Alegre por volta de 1900.

O Divino e carnaval

Festas populares predilectas de Porto Alegre de ha 35 annos, eram o Carnaval e o Divino.

O Carnaval, então, era feito pelas famílias de maior conceito da cidade, as quaes se dividiam em dois partidos, na época do Entrudo: os Venezianos e a Esmeralda, duas importantes sociedades que se apresentavam com muito luxo e gosto, sob os aplausos delirantes dos seus enthusiastas.

O lança perfume não era conhecido e só veiu a ser muitos annos mais tarde.

O entrudo era praticado com bisnagas, grandes seringas de folha de flandres e ‘limões de cheiro’, que, a principio eram de cêra e mais tarde passaram a ser de gomma elastica.

A verdadeira festa da Cidade, porém, era a do Divino, á praça da Matriz.

Nos dias de novenas e de fogos, a cidade affluia para aquelle logradouro, emprestando-lhe o aspecto de uma grande feira nocturna. Também essa festa interessava a melhor sociedade porto alegrense.

O cinema não era ainda conhecido. Mas havia uma sessão de ‘vistas’ – Kosmorama – muito apreciada que precedia os ‘fogos’, nos quaes tomavam parte as ‘jardineiras’.

Serviço de transportes

Os transportes urbanos para os poucos arrabaldes era feito em bondes de burros.

Os conductores desses vehiculos primitivos usavam um enorme chicote com que castigavam os infelizes animaes e, durante o trajecto, sopravam uns apitos característicos.

Por esse tempo, os bondes demandavam o Menino Deus, a Gloria, Theresopolis, Parthenon, faziam o itinerário do ‘Circular’ de hoje, pelo Gazometro, tomando, na Redempção, o seu rumo.

Os passeios eram feitos a carro, pois os autos não existiam.

O Mercado Público

que há poucos annos, menos de 20 talvez, soffreu um incendio, se localizava entre duas docas: a que foi extincta com a praça Parobé e a que se localizava aos fundos da Intendencia.

A praça do Mercado, hoje 15 de Novembro, era ponto de carros e carretas.

A Praça da Alfandega

A praça Senador Florencio era muito primitiva.

Ao centro se encontrava o edifício da Alfandega, de material – uma horrível construcção colonial.

Aos domingos á noite, quando havia retreta ao pé do chafariz, fronteiro ao edifício do Club do Commercio de hoje, as famílias affluiam para ali, movimentando e animando o mais central dos nossos logradouros públicos.

Eis ahi

em rápido esboço o que era Porto Alegre quando surgiu o primeiro numero do ‘Correio do Povo’.

Basta compulsar as edições desta folha daquella época para sentir como ella era o espelho fiel da cidade e da gente ingenua e boa de 1895.

Nestes rápidos 35 annos a cidade cresceu, desdobrou-se, avassalou quilômetros e quilômetros de terras.

Metamorphoseou-se.

A luz electrica, o automovel, o calçamento, os bondes electricos e os edifícios alterosos, os lindos jardins – tudo isso transformou a pacata Porto Alegre patriarcal nessa cidade laboriosa, inquieta, moderna, que ahi está.

Comparada á de 1895, Porto Alegre dos nossos dias é uma metrópole vertiginosa.

A trajectoria do ‘Correio’

foi paralela á da cidade. Nestes trinta e cinco annos decorridos, as quatro paginas do ‘Correio do Povo’, compostas a mão e impressas em machina plana movida a vapor, se converteram no grande jornal de hoje, composto em 10 linotypos e impresso num palácio de aço que é nossa Marinoni.

A cada progresso da cidade corresponde um progresso do ‘Correio do Povo’.

De resto, filho da cidade, reflectindo todos os seus anseios, todas as necessidades, todas suas amarguras, todas as suas alegrias, outro não podia ser o destino do ‘Correio do Povo’.

A cidade soube pre[…] dando-lhe um desenvolvimento igual ao que ella soffreu [em] relativamente curto espaço de tempo”.

Autoria desconhecida.


 

Em trinta e cinco annos…

Porto Alegre, hoje, indiscutivelmente, é uma grande cidade. E uma das mais belas do Brasil, pela graça de sua natureza, que sorri em magníficos panoramas, e pelo esforço humano, na obra de continuo embelezamento.

Uma das maiores satisfações de quantos trabalham nesta casa – e sel-o-ia, principalmente, do seu inolvidável fundados, se vivo fôsse – é esta verdade simples, meridiana e consoladora: O ‘Correio do Povo’ vem acompanhando, passo a passo, o ciclo de crescimento urbano. Cresceu com a própria cidade, expandiu-se na expansão dela engrandeceu-se na sua grandeza. Não se póde dissociar o rytmo de desenvolvimento de Porto Alegre do rythmo que marca, paralelamente, as sucessivas etapas do ‘Correio do Povo’.

A nossa reportagem, com ilustrações da época, reproduz aspectos de Porto Alegre no anno em que surgiu esta folha. A fixação desses aspectos do passado nunca é desinteressante. O passado é a sombra da nossa vida, tanto mais alta quando mais os annos vividos, sombra que se alonga com a edade.

Os velhos, aquelles que teem vivido muito, gostarão de reavivar na memoria as recordações de uma cidade transformada por essa força multiforme, que é a evolução. As gerações novas, comparando o passado com o presente, também gostarão de entir as medidas do progresso de sua cidade. Que era Porto Alegre, quando o ‘Correio’ surgiu? Os dados que a seguir estampamos satisfarão essa curiosidade.

Os recenseamentos federaes de 1890 e 1900 accusaram, respectivamente, as seguintes cifras para a população de Porto Alegre:

Pop. 52.186 – 1890; Pop. 72.274 – 1900. O coeficiente geométrico de crescimento da população do decennio foi 3,69%, o que dá para a população calculada: em 62.513 habitantes no anno de 1895 e em 64.819, no anno de 1896. Portanto, no anno em que foi lançado o ‘Correio do Povo’ a nossa capital contava 62.513 habitantes[4].

Nesse mesmo anno, atingiu a 9.132 o numero de predios lotados. No anno seguinte, esse numero se elevou a 9.914.

A receita orçada para o exercício de 1895, foi de 904:510$000 e a despeza orçada em igual quantia.

A receita arrecadada em 1896 foi de 1.186:271$261. A receita arrecadada dos immoveis urbanos foi, em 1895, de  477:854$121, e, em 1896, 507:487$734.

Todos esses algarismos cobram relevo num cotejo de expressões numéricas relativas ao quatro actual da cidade.

Segundo dados colhidos na Directoria de Estatistica, a população da capital deve elevar-se hoje a 280.000 habitantes. Em todo o município, o numero de prédios lotados se extressa pelo numero de 34.000.

A receita municipal foi orçada para 1930 em 32.126:000$000, total que se decompõe nas seguintes parcelas: 26.491 contos, correspondentes á renda ordinária e 5.635 contos, correspondentes á renda extraordinária.

Anteriores ano anno de 1924, não possuímos elementos estatísticos relativos ao movimento de construcções. Mas os dados que reproduzimos dão precisa idéa do prodigioso desenvolvimento de Porto Alegre, em materia de construções:

 

Annos: Numero de prédios construidos
1924 601
1925 783
1926 1.045
1927 1.318
1928 1.470
1929 1.567

 

Não incluímos aqui, está claro, reconstrucções, aumentos e construcções ligeiras”.

Autoria desconhecida.

Correio do Povo, 01/10/1930, p. 10. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.
“A cidade á época em que surgiu o Correio do Povo”. Correio do Povo, 01/10/1930, p. 10. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

 

Referências:

[1] Correio do Povo, 01/10/1930, p. 10. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho. A grafia original foi mantida.

[2] Espécie de gárgula metálica para escoamento das águas da chuva do telhado, característica das construções do século XIX no Brasil.

[3] Provavelmente o Cine-Theatro Apollo, construído em 1914 na avenida Independência junto à Praça Dom Feliciano, em frente à Santa Casa de Misericórdia.

[4] Em 2021, a população estimada de Porto Alegre é de 1.492.530 habitantes segundo o IBGE: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rs/porto-alegre.html

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