De origem açoriana, a devoção ao Divino Espírito Santo deu origem à irmandade de mesmo nome em Porto Alegre, onde comemorava-se, entre maio e junho, a que talvez tenha sido a festa religiosa mais popular da cidade até fins do século XIX. A sede da Irmandade, uma graciosa capela em estilo gótico que ficava bem na esquina da rua Espírito Santo com a rua Duque de Caxias, já não existe: foi demolida juntamente com a antiga Igreja Matriz para dar lugar à atual catedral metropolitana. A Igreja do Divino, atualmente na avenida Osvaldo Aranha, foi construída para continuar abrigando a irmandade devota que crescera e demandava uma sede maior nas primeiras décadas do século XX.
Porém, a memória tanto da capela quanto da festa do Divino permanece na cidade com a força das suas tradições populares. Na pintura, o tcheco Francis Pelíchek retratou a festa noturna em uma majestosa tela a óleo em que é possível ver a multidão na Praça da Matriz sob a iluminação feérica dos bicos de luz e, ao fundo, a capela do Divino envolvida em luzes multicores.
Na literatura, o poeta e escritor Augusto Meyer relata a festa com as cores vívidas da memória de sua infância e juventude, tecendo uma impressionante descrição da mesma. O autor relembra o percurso da procissão para coletar esmolas pelas casas da cidade, os fogos de artifício, as banquinhas de comidas e bebidas que se animavam à medida em que a noite avançava e até da sessão de cinema ao ar livre que se dava na Praça da Matriz, em pleno frio de junho.
“A festa do Divino[1]
De repente corria a notícia: o Divino vai percorrer a praça e as quadras mais próximas. O Imperador Festeiro já encomendou os fogos, vai ser um festão dos grandes… Em todas as casas, por devoção ou novidade, preparava-se o povo para a visita do Divino.
Os guris ficavam de tocaia lá no alto da praça. E vem não vem…
Às três horas da tarde, espocava uma girândola de foguetes e o sino da capela, num repique alegre de festa, anunciava a saída do peditório; via-se o cortejo das bandeiras descendo as escadas do Império.
À frente do bando de opas vermelhas, o negrinho Jacinto escancarava o riso na beiçola; vinha de fogueteiro o felizardo, e pitando, ainda por cima! De vez em quando parava, escarafunchava na buchinha, encostava-lhe a brasa do cigarro e, arqueando o braço num gesto gracioso e negligente, como quem diz: minha gente, aprenda, largava para o alto a chispada do foguete, com um rabo de faíscas na calçada, que esparramava as canelas dos moleques… Vendo contra o céu o penacho branco e preto da fumaça, os olhos tinham tempo de mandar aviso ao ouvido: aí vem o estouro…
– Viva! Viva o Divino!
Mal estourava a bomba, a vareta já vinha de volta, crescendo, e – a que te pego – espalhava-se a penca dos guris numa disparada de calcanhares bate bate no traseiro.
Esvoaçavam ao vento as fitas azuis e vermelhas das bandeiras bordadas, com uma pomba de prata rebrilhando ao sol – era o peditório que descia a rua, parando de porta em porta. Via-se o alferes da bandeira estacar de quando em quando, entrar numa casa, sair ao fim de alguns minutos, e o foguete anunciava mais uma dádiva – níquel, patacão ou pelega – para a grande festa da cidade.
Aqui chegou o Divino,
Que a todos vem visitar;
Vem pedir-vos uma esmola,
Para o seu Império enfeitar.
A pombinha do Divino
De voar já vem cansada,
Ela pede aos seus devotos
Que lhe dêem uma pousada.
O Divino Espírito Santo
Não pede por carestia,
Pede somente uma esmola,
Pra festejar o seu dia.
Quando a bandeira entrava numa sala, com um vago cheiro de igreja, as devotas caíam de joelhos e punham os lábios untuosos na pomba de prata, enquanto ao lado o tesoureiro abria a sacola das espórtulas. Se a dádiva não correspondia à expectativa e da casa de algum pilchudo pingava um magro cobre, o capitão do bando agradecia entre dentes, dava a ordem de marcha com sua vara de prata e desabafava aos pedintes da Irmandade a indignação: aquilo não valia um busca-pé…
Mas espocavam alegremente os foguetes do negrinho Jacinto ao claro sol da tarde. Esvoaçavam por cima do bando vermelho as fitas compridas. Na ponta de cada estandarde uma pomba de metal abria as asas. E o tesoureiro, retardado, e pesadote da carga, fechava o préstito, passando o saco da direita para a esquerda ou de um ombro para o outro, num cansaço um tanto ostensivo e cheio de responsabilidades.
Entre a inveja ao fogueteiro, o respeito pelo saco e a atração das varetas queimadas, ficávamos aparvalhados de hesitação, trepidantes e patetas; de instante a instante, um de nós largava a correr como louco, atirando as taquarinhas para o alto, entre vivas e pinotes. Era a folia do Divino Espírito Santo, na Praça da Matriz, em Porto Alegre.
Começavam os preparativos. Bancos cheirando a pinho novo protegiam os canteiros. Estendiam-se fileiras de bandeirolas festivas em todos os rumos, com postes ornamentados de galhardetes. Aos quatro cantos da praça erguiam-se os coretos para as famosas bandas militares. Num crescendo triunfal de pancadaria, cantavam os martelos sobre as tábuas, achatando a cabeça dos pregos. Os dentes da serra comiam o risco do lápis, e ouvia no seu ritmo o ‘serra madeira” dos meus brinquedos:
Serra madeira,
Carpinteiro,
Serra direito
Ganha dinheiro…
Em frente da igreja deitava corpo o coreto grande do leilão e na parte baixa da rua fronteando a casa do Tibúrcio de Azevedo, a casinha do operador cinematográfico parecia muito alta e estreita sobre a armação de estacas, com sua escadinha íngreme e a misteriosa abertura serrada nas tábuas, por onde passava o olho da máquina. O pano das ‘vistas’, como dizia o povo, era estaqueado numa espécie de portão grande, que tomava quase toda a largura da rua.
Entrava em cena o Tubino, o pitoresco cenógrafo das festas populares, com as enormes latas de tinta e a sua juba soberba, comendo as orelhas. Tira o pelego da cabeça!, gritava a molecada. Imperturbável, assistido por aprendizes, Tubino projetava sua fértil inventiva de decorador sobre a carcaça de sarrafos e o revestimento de lona; eram volutas engenhosas, enganchando em rabioscas e argolinhas, com reticências oportunas, para regalo dos olhos. Talvez sem querer, com uma frescura imprevista que era um frágil acaso, punha no meio do enchimento um delicioso motivo floral, que deitava raiz lá no fundo da sua ingenuidade, rimando com o mistério da poesia… Nos momentos de autocrítica recuava, os olhos postos na frincha das pálpebras, a cabeça leonina meio de lado, para apreciar melhor a obra dos seus amores. Tubino vivia e sofria os seus coretos. Mas também em dois tempos transfigurava-os em não sei que estranhas fragatas empavesadas.
Junto ao meio-fio das calçadas, em volta do Tesouro e do Teatro São Pedro, na Rua da Ponte ou para os lados da Bailante, os doceiros e quitandeiros improvisavam as suas tendas, onde vendiam pinhões, pipocas, amendoim torrado, peixe frito, sonhos e broinhas de milho, balas de ovos, cocadas cor-de-rosa, balas de côco e puxa-puxa, grandes cartuchos de bala americana, que partiam ali mesmo sobre uma prancha, com a machadinha curta, de dois gumes. Corríamos a inspecionar os preparativos, já de água na boca.
E as novenas sempre cheias; pela porta aberta, fulguravam altares, o coro atraía os conhecedores como um espetáculo de ópera no São Pedro, e os velhos que ainda se lembravam do tempo do Mendanha bebiam as vozes maviosas, enternecidos de saudade.
Ao anoitecer, a capela do Espírito Santo parecia uma simples armação de luzes multicores, uma fachada feita de bicos de luz, contra o céu noturno. A praça era um mar de cabeças ondulantes.
– Está na hora! – reclamava o povo, esperando pelas ‘vistas’.
De súbito, no meio da gentama, abria-se um corredor, formava-se uma clareira, à força de empurrões: chegara o bombeiro encarregado de molhar o pano do cinema. Aberta a chave do registro, o jato enchia a tripa murcha da mangueira e o esguicho claro subia, às vezes passava por cima do pano e caía do outro lado, em aguaceiro imprevisto, atropelando os incautos.
Eu já conhecia o cinema ao ar livre, das festas de São Pedro, na Floresta. Lembra-me bem uma fita colorida, em que a moça do vestido azul entrega ao moço de preto, distinto e melancólico, um ramo de miosótis… Mas não havia comparação com o cinema da Praça da Matriz, na festa do Espírito Santo; todas as noites, programa novo, com duas sessões.
Depois de muita gritaria, o povo se aquietava, e como era estranho ver aquela enchente humana, apesar dos frios de junho, silenciosa e embevecida, sem um pio de impaciência, fascinada por um retângulo de pano, onde fantasmas fotográficos se agitavam entre dois letreiros, que muita gente mal podia soletrar, e das janelas da parte baixa da quadra as famílias acompanhavam pelo avesso…
Que espanto para a sia Clementina, a velha serrana, criada do professor Meyer, quando viu pela primeira vez na vida as ‘vistas’… Estava a meu lado na sacada e agarrou-me pelo braço, num vago terror:
– Que é aquilo, menino? Retrato se mexendo… é figurinha de papel?
Com o implacável pedantismo de guri já matriculado no ginásio, tentei explicar a mandinga à sia Clementina, mostrando o feixe luminoso que saía da casinha do operador, mas logo vi que a serrana velha não podia entender patavina da generosa explicação.
Não prestava grande atenção às ‘vistas’: o que eu queria era arrancar licença aos meus pais e misturar-me ao povo, conhecer os segredos da festa, comprar pinhões e cartuchos de balas, arrematar qualquer coisa no leilão, percorrer todas as tendas e coretos, gritar com os outros meninos:
– Musga, musga, maestro Marcolino!
Que alegrão, quando nos concederam a licença tão desejada num dos intervalos do cinema, ao primeiro acender das luzes! Quando parava a projeção, no primeiro intervalo, e a claridade inundava de súbito o mar de cabeças atentas, o povo rompia num óóó e se desmanchava em remoinhos, cada qual procurando abrir uma picada no meio dos outros, à força de cotovelos e ombros, de ‘com licenças’ e empurrões. Um vento de capricho e aventura desmanchava o ajuntamento, e ao silêncio de crianças bem comportadas – silêncio mágico, fascinação das imagens num pano espectral – sucedia o despertar da brouhaha, aquele sussurro feito de muitas vozes e arrastar de passos.
Às vezes surgia um ondular mais crespo de cabeças, numa brecha suspeita, agitavam-se braços; entre gritos e exclamações, trilavam apitos de guardas e ratos-brancos[2] metiam o chanfalho nalgum desordeiro ou apartavam a briga, dando conselhos cheios de experiência.
Ao reacender das luzes, animava-se o passeio dos namorados no redondo da praça, em volta no monumento a Castilhos. Por um ajuste instintivo entre os interessados, reinava uma ordem quase estelar naquele namorisco, de modo que as moças, formando um círculo de raio menor, percorriam num sentido a sua órbita, enquanto o círculo mais largo dos rapazes girava em sentido contrário; a cada encontro astronomicamente previsto, os olhos trocavam a senha muda e cariciosa. Era só um momento, um relance em que as pupilas se dilatavam um pouco, para embeber-se com ousadia na luz de outras pupilas; ou então, mais disfarçadas, com uns leves toques de riso e malícia, abriam caminho por entre cílios, numa cumplicidade oblíqua… Mal se voltavam as cabeças, e já iam sumidos os dois na roda-viva dos outros namorados.
Tudo isto, estranha cena de sempre, os olhos da criança observam com avidez e guardam no fundo da memória; mais tarde, quando chega a hora do primeiro namoro, o sabor delicioso da iniciação parece misturar-se a uma vaga lembrança de coisa vivida e reconhecida. O redondo da praça, com as duas rodas de moças e rapazes, os ingênuos olhares cruzados, as emoções de uma noite de festa, quando ao fim das novenas espocavam foguetes e as bandas de música traduzem o alvoroço da esperança numa linguagem marcial de marchas vivas e alegres, num ritmo juvenil de alegria e conquista – o redondo da praça era um picadeiro de recordações para os moços de agora, mal saídos da infância, entravam por sua vez na roda, à espera de uns olhos – e assim tudo recomeça, como um círculo fechado, para as ilusões de sempre.
Nos quatro cantos da praça, as quatro bandas militares emendavam as marchas festivas; os pregões dos tendeiros e dos vendedores ambulantes pareciam animados do mesmo furor de emulação:
– Olha o grão-de-bico! O grão, o grão-de-bico!
– Aqui tenemo peche frito – e pipoca para sobremesa!
– Pipoca e amendoim torrado! Chega minha gente! E é pra já que eu vou viajá!
– Piiiinhão quente! Está quentinho o pinhão!
Mas já de muito longe se ouvia a poderosa voz do Abílio, abrindo alas no meio da massa, às vezes com efeitos irresistíveis de ‘tremolo’ que nem os próprios verdureiros gringos não saberiam imitar.
– Aí vem o Abílio – diziam todos.
Parecia cruzar a praça em todas as direções, acompanhado pelo seu pregão como um cavaleiro de Wagner pelo motivo inconfundível que anuncia sua entrada em cena.
O grito do negro Abílio, o baleiro mais popular da cidade, era um foguete de lágrimas: começando num registro baixo – bala – subia de repente a uma nota muito alta de tenor – de mel – para terminar, afinal, já em alturas inacessíveis, num agudíssimo – de paaau – que perfurava os ouvidos e lhe valeu a consagração de virtuose dos baleiros.
Corríamos a ver o leilão. O enorme coreto apresentava um aspecto de tenda de feira, e era tal a profusão de coisas disparatadas em oferta, que os leiloeiros tomavam ares de prestidigitadores ou transformistas, contratados pela Irmandade do Divino, para as funções ao mesmo tempo fantásticas e práticas do quem dá mais.
– Vejam, senhores, apreciam os distintos patrícios que lindas fronhas bordadas para casal! Quanto dão por elas?
– Olha a cara de massa doce com olho de feijão!
– Tenho dois mil réis pela caixinha de surpresas… vai bater!
– Quinhentão o pote de melado, é o meladinho de Santo Antônio da Patrulha… quinhentos réis e é de graça!
Em volta do coreto, que parecia um palco, arrematantes e curiosos acompanhavam o espetáculo, rebatendo muitas vezes com bromas e dichotes o pregão do leiloeiro.
De quando em quando, por cima do mar de cabeças, aparecia uma cana alta e ainda enfolhada, que o arrematante carregava em triunfo.
Antes de terminar a segunda sessão do cinema, grupos de espectadores começavam a caminhar no rumo da Bailante e do Teatro São Pedro; cortava o céu de repente o aviso do primeiro foguete de lágrimas.
Eram enormes, cabeçudos, subiam devagar, furando o céu num esforço roncado, que parecia interminável. Depois de um leve estalo, abriam lá no alto uma chuva de ouro, ou um jorro de lágrimas de prata, que escorriam pela face escura da noite; às vezes, do centro do jorro luminoso, pingava uma gota verde, brotava uma lágrima encarnada, e em todos os olhos parecia refletir-se o mesmo deslumbramento, e o mesmo ó arredondava as bocas.
Acontecia também que o foguete, depois de riscar uma reta de fogo, tomando novo impulso, levemente inflectido, recomeçava a devorar o espaço, subia, subia como se quisesse furar o teto do céu; acabava deixando cair um assobio prolongado e fieiras de estrelas, presas a um fio invisível, pedaços de um colar de vaga-lumes.
A cerimônia da queima dos fogos, pregados em postes, obedecia a uma ordem ritual. Antes de acender a pombinha, considerada o fim da festa, era de uso atear fogo no casal de pretos, estranhas figuras de braços abertos, como espantalhos, bonecos grotescos que me enchiam de admiração e medo. Ele, seu João das calças brancas, trazia dentro da cabeçorra de papelão, em vez da mioleira, uma bomba de arrebentar os tímpanos; ela, Maria Maluca, desandava a dançar em giros vertiginosos, largando estouros, traques e busca-pés por baixo da saia inflamada.
Mas o tremendo estrondo acabava de abalar a praça, vibrando ao longe, sobre os telhados pacatos de clarabóia e as águas adormecidas do Guaíba. Crescia a seguir o silêncio profundo de expectativa. Chegara a vez da apoteose ao Divino.
A mecha da pombinha chispava ao longo de um fio comprido e, atingindo o centro da armação, estralejava um momento nas cordas de pólvora; enovelavam-se grossas nuvens de fumaça, avermelhada pelos clarões intermitentes; e enfim, despedida triste, mas ainda cheia de promessas, a imagem da pomba sagrada, de asas abertas, palpitava um breve instante, como feita de línguas de fogo, para apagar-se a pouco e pouco, desmanchada em pingos de luz mortiça…
Era o fim.
Uma incerteza, primeiro, um vaivém hesitante por entre os fogos queimados, que já não fumegavam; um novo silêncio, enquanto as bandas desciam dos coretos e, entrando em forma, aguardavam a ordem de marcha, rumo do quartel.
No ‘redondo’, os namorados procuravam resistir à debandada próxima, inventando pretextos para mais umas voltas, queimando o último cartucho, o das mentiras:
– Ainda tem o leilão! E a bênção na capela…
Algum rapaz mais espero dirigia-se aos companheiros em voz bem alta, cheia de intenções, para que as tias ouvissem, e ao menos um derradeiro pretexto e um recado extremo ainda perdurasse na recordação das vigiadas:
– Vocês vão perder o resto da festa…
Desta vez era o fim, e talvez aquele fim, sem contar a espera, fosse o melhor da festa, principalmente quando se acaba o último dia do Divino e só restava o remédio de esperar pela entrada do outro inverno. O melhor da festa era esperar por ela.
Agora, claros e mais claros no meio do povo.
A iluminação crua apenas servia para mostrar com dureza implacável os bancos abandonados, a relva pisoteada, os grupos que refluíam para os altos da Rua da Igreja, em caminho da Cidade Baixa, ou abalavam na direção da Ladeira e da Rua da Ponte.
Toda uma onda de retirantes inundava as ruas laterais, raspando sola no rude calçamento, num passo cada vez mais picado por causa do frio. Iam meio adormecidos, apesar da pressa friorenta; combatiam a dormência, mas o cansaço trepava pelas pernas. Carregados na onda, os baleiros continuavam a apregoar a mercadoria – óia as balas! – ainda com vago palpite de proveito.
Rompiam as bandas na marcha final, por despedida; e havia assim outro clangor nos instrumentos, o eco parecia subir pelas fachadas sombrias, o ritmo, tão alegre no começo, pautado agora por um movimento de retirada rápida, a passo cadenciado, tomava um sabor de tristeza, de falsa animação, de música tocada sem propósito e apenas para espantar o silêncio.
Longos cordões de bicos de luz, amarelecidos e murchos, depois de agoniar algum tempo, sumiam-se lentamente na sombra que avançava sob as árvores da praça, coberta de papéis amarrotados, cartuchos vazios de bala, cascas de pinhão, restos de farnel.
Tendeiros sentados à beira da calçada recontavam os cobres do lucro ou, desmontando tabuleiros e tendas, comentavam os sucessos da noite, com palavras desmanchadas em bocejos.
No coreto grande, os leiloeiros arrecadavam as sobras do leilão.
Ainda havia réstias luminosas em algumas sacadas fronteiras ao largo; de vez em quando, alguém tornava a debruçar-se, para olhar uma rua deserta, como o pano do cinema alvejando ao fundo, levemente enfunado pelo vento.
De muito longe, ainda chegavam na praça trechos truncados do ‘Cerco de Bagé’ ou de algum dobrado marcial transposto em surdina quase imperceptível pela distância cada vez maior; era como se os músicos, fantasmas da recordação, apenas reproduzissem o eco interior da memória.
Depois, na pureza do silêncio, as árvores recuperavam seu sussurro interrompido.
E onde estão os namorados?
Acabou-se o que era doce.
Esquinas na sombra,
Janelas fechadas…”
Referências:
[1] MEYER, Augusto. Segredos de infância; No tempo da flor. Porto Alegre: IEL/Editora da Universidade/UFRGS, 1996. P. 60-68. A grafia original foi mantida.
[2] Como eram conhecidos os policiais municipais à época, em função da cor da sua farda.