Assim como a reportagem que precedeu esta, é possível notar o interesse do público leitor do jornal Correio do Povo pela memória e pela toponímia da cidade. Como antes, é preciso lembrar que no ano de 1929, quando da publicação desta reportagem, Porto Alegre era um canteiro de obras, e vivia um ritmo de modernização inédito na sua história.
O texto traz pistas do uso e desuso de certos topônimos, mostrando o crescimento da cidade. Afinal, se antes as ruas e travessas levavam os nomes de seus moradores, indicando a pequenez do núcleo urbano, já no início do século XX eram gradualmente suplantado por outros referentes a personagens e a mudanças de regime nacionais. Ainda assim, permaneciam na memória e nos usos populares, sendo que alguns deles resistem até hoje.
“A historia da nossa Cidade através da denominação pittoresca de algumas de suas ruas mais antigas[1]
Um antigo becco mal-afamado, de ruidosa tradição na vida de Porto Alegre que deu logar a uma ampla e arejada arteria – O alto da Bronze, localizado no berço da Cidade e hoje praça de desportos, deve o seu nome tradicional a uma tal Felizarda que ali habitou – Nesse local foram lançados os fundamentos, depois abandonados, da egreja da Conceição – A historia rapida do becco do Leite, ha pouco desapparecido – Os varios nomes da rua Senhor dos Passos
Leitores do ‘Correio do Povo’ trazem a sua contribuição a estas reportagens que tanto interesse veem despertando
[Mai]s do que suppunhamos [tem] sido alcançado pela nossa reportagem de domingo ultimo em torno dos nomes primitivos de algumas das mais […] ruas de Porto Alegre, […] natural que tal se ve[rifique], pois, não só os saudos[ismo] dos antigos habitantes [ainda] teve alguns momentos de ascensão, com a recordação de velhos nomes quasi [esqueci]dos, como os proprios [represen]tantes das gerações mais novas acompanharam com interesse e com curiosidade aquellas reminiscencias da Porto Alegre que elles [conhec]em vagamente, através […]çadas descripções dos maiores.
[Ness]as condições, fomos […] pelo interesse ambi[…] continuar na chronica […] aquella reportagem, […] é certo que era nosso […] esmiuçal-a.
Vamos começar a nossa chronica de hoje por uma das ruas mais centraes da cidade – a General Camara – mais conhecida, ainda hoje, por Ladeira, que, apesar da sua localisação, já hoje não é conhecida pela sua nomenclatura anterior.
General Camara
Da rua da Praia até a da Ponte, rua do Ouvidor.
Da rua da Praia até a 7 de Setembro, Ladeira, que mais tarde se generalisou para toda aquella arteria.
Este trecho tambem se denominou becco do João Ignacio, ou becco da Garapa.
Estas denominações provieram-lhe de naquelle trecho ser vendida uma garapa que os entendidos reputavam a melhor da cidade e da qual hoje raro se lembram estalando a lingua gulosa.
Essa garapa era extrahida de um cannavial que João Ignacio Teixeira possuia no Caminho Novo, então arrabalde afastado.
Espirito Santo
Ainda hoje mais conhecida por becco do Imperio.
O seu nome primitivo era becco do Cemiterio, pelo facto de se localisar ella a dois passos do segundo cemiterio que Porto Alegre possuiu e que occupava mais ou menos o logar em que hoje está a praça Marechal Deodoro (Matriz).
Não ha muito, ainda, o ‘Correio do Povo’, em completa reportagem, informou os seus leitores de que nas recentes excavações para a construcção da nova Cathedral Metropolitana foram encontradas ossadas humanas que lembram a existencia daquella necropole.
Passou, depois, a chamar-se becco do Imperio em virtude da capella do Imperio localisar-se á esquina da rua da Egreja, face oeste.
General Victorino
Mesmo para a novissima geração, esta rua, parallela á dos Andradas e que, começando á rua de Bragança, vae terminar na rua da Misericordia, mesmo para a novissima geração, diziamos, o seu nome é da Alegria.
Entretanto, o nome primitivo da rua General Victorino não foi esse.
Àquella via publica chamou-se, primeiro, rua do Arco da Velha e, mais tarde, da Prisão Militar, por nella estar localisada, como o proprio segundo nome indica, uma prisão militar.
Entretanto, o seu terceiro nome – da Alegria – foi o que ficou, não logrando apagal-o a denominação official de General Victorino.
Travessa Augustura[2]
Já não existe, fechada que foi, ha pouco, pelo predio que esta sendo occupado pela Energia Electrica[3].
Era ao lado do ‘Café Suissa’, começando á rua da Praia e indo terminar á rua Andrade Neves (rua Nova).
Entretanto, rarissimos conheciam essa ruella por travessa Augustura.
O seu nome popular era becco do Leite.
Primitivamente chamou-se becco do Barriga.
Depois, becco D. Ursula.
Mais tarde, becco do Lisboa.
Por fim, do Leite, por que ficou conhecido até o seu desapparecimento recente.
Por Augustura, denominação municipal é que ninguem, ou quasi ninguem o conhecia.
Todas aquellas denominações anteriores tinham origem em nomes de pessoas que os habitaram. O ultimo, Leite, era um alfaiate, cujo nome todo era Manoel José Leite.
Alto da Bronze
Não abrimos este capitulo com o seu nome actual – praça General Osorio – por que ninguem saberia do que se tratava, tão vivamente resistiu o nome tradicional de Alto da Bronze[4].
Essa praça, hoje de desportos, está localisada no berço de Porto Alegre e foi o coração da cidade nos seus primeiros dias.
Seus nomes anteriores são: praça Manoel Caetano, depois, Senhor dos Passos, mais tarde, Conceição, após, Ladeira de São Jorge e, por ultimo, antes de General Osorio, Alto da Bronze, pelo qual até hoje é popular.
O nome de Conceição lhe adveiu do facto de haverem ali sido lançados os fundamentos da egreja daquelle nome, depois abandonados, tendo o templo sido construido no local onde ainda hoje se encontra.
Alto da Bronze tem origem na autonomasia [sic] de certa mulher de fama, que ali morou e que se chamava Felizarda.
Rua Paysandú
Hoje rua, sim senhores. Mas, não ha muito, travessa[5].
O nome por que, porém, foi mais conhecida essa via publica foi becco do Fanha, de terrivel memoria.
Habitados por mulheres de má vida, ponto habitual de marinheiros, teve o becco do Fanha o seu nome fulgurando nos mais memoraveis sarilhos, nas desordens mais rumorosas da cidade de ha cincoenta e mais annos.
Dizer becco do Fanha, ha mais de vinte annos, era dizer bernarda[6], conflicto, barulho.
Ha cerca de doze annos, já então com o nome de travessa Paysandú, começou a ser demolida para dar logar, dizia-se a uma linda avenida que se resignou a ser, afinal de contas, uma espaçosa e optima rua.
Seu nome primitivo foi becco do Ignacio Manoel Vieira e, depois, do Fanha.
Vejamos o que delle nos diz Augusto Porto Alegre em sua ‘A fundação de Porto Alegre’, 2ª edição, 1909:
‘Fanha era o appellido do taverneiro Francisco José de Azevedo, estabelecido no local, devido ao defeito da falla. Foi elle o primeiro morador, isto em 1800; edificou casa na rua dos Andradas, bem no centro da quadra, que então ia da rua Clara á rua da Ladeira; julgando necessaria a abertura duma outra rua, entendeu deixar a largura que hoje forma o becco do Fanha, onde construiu uma casa á moda do tempo, com rotulos[7] pintados de verde, que em 1895 foram demolidas por ordem da Intendencia.
General João Manoel
Da rua da Egreja até a da Praia – rua Clara, nome por que até hoje ficou, toda ella, conhecida.
Da rua da Praia até a praia, becco dos Marinheiros, denominação que ha mais de trinta annos desappareceu.
Senhor dos Passos
Esta rua é das que perderam as suas denominações primitivas.
O nome official supplantou os tradicionaes.
Seu primitivo nome foi Becco do Couto, por ali morou, então, um velho Couto, muito conhecido.
Mais tarde passou a chamar-se Becco do Cordeiro[8], tambem em homenagem a um morador, um certo João Cordeiro.
O interesse
Que estas reportagens estão despertando não podia ser maior, como acima dissemos.
A proposito da nossa chronica anterior, recebemos as seguintes missivas:
‘Sr. Redactor do ‘Correio do Povo’. Saudações. Como antigo morador da nossa bella cidade, acompanhei, com o maior interesse, o artigo illustrado que essa conceituada folha publicou, domingo, sobre as denominações de varias ruas da capital. Como velho conhecedor da cidade, porém, tenho a dizer que o articulista esqueceu de lembrar que a rua General Pantaleão Telles se chamou, e ainda hoje é conhecida pelo de Passagem. Sem mais, attentamente. Um velho morador da cidade.’
‘Porto Alegre, 15 de abril de 1929. Ilmo. Sr. Chronista Urbano do ‘Correio do Povo’. N. capital – Lendo vossa chronica publicada no ‘Correio’ de hontem, sobre os nomes antigos e modernos das ruas de nossa capital, deparei com varios senões que, como morador antigo desta cidade, peço venia para rectificar:
É certo que a rua Demetrio Ribeiro teve, em outroe tempos o nome de rua da Bahia, mas, não sómente da rua Pantaleão Telles á rua Vasco Alves, e sim até a General Canabarro.
Nesta ultima, existiu tambem o celebre ‘Becco da Ferraria’, notavel pelas desordens que, quasi diariamente, ali, se ‘realisavam’. Este becco era tambem conhecido por ‘Avenida[9] Alexandre Herculano’.
Quanto á ‘Cova da Onça’, se não me falha a memoria, ficava localisada no morro situado na esquina das ruas Demetrio Ribeiro e General Portinho e não na rua General Canabarro.
Tambem a rua General Salustiano é ainda hoje muito conhecida por rua da Passagem, facto este que o sr. Chronista deve conhecer perfeitamente e que só por uma omissão momentanea deve ter deixado de mencionar.
Sem motivo para mais, aguardo a continuação de tão interessante chronica e subscrevo-me, de v. s. patr.º e creado obrigado – Um Antigo Porto Alegrense.’
As observações destas missivas foram confirmadas pelo nosso amigo e prezado collaborador, o provecto professor Ignacio Montanha.”
Autoria desconhecida.
Referências:
[1] Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV. A grafia original foi mantida.
[2] Certamente aqui se trata da travessa Angustura.
[3] Muito provavelmente o imponente palacete da antiga Força e Luz, construído pelo proprietário do Club dos Caçadores e atualmente ocupado pelo Centro Cultural CEEE Érico Verissimo.
[4] A predileção por este nome se mantém até a contemporaneidade.
[5] A direção em que está implantada essa rua, cortando duas ruas principais (rua dos Andradas e rua Riachuelo) na direção Norte-Sul, é comum em vias de menor importância e mais estreitas, que também ficavam conhecidas como becos ou travessas. Aqui, o nome travessa parece ter um sentido pejorativo.
[6] Antigo sinônimo de motim, revolta.
[7] Provavelmente o autor refira-se às rótulas das casas coloniais portuguesas.
[8] Em outras fontes, também citado como beco do Cordoeiro.
[9] Aqui o termo avenida pode se referir não a uma rua larga, mas a um correr de casas pobres de aluguel, geralmente ocupando um único lote.