"Alto da Bronze". Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.

A história da cidade através os nomes pittorescos de algumas das suas ruas (2)

Assim como a reportagem que precedeu esta, é possível notar o interesse do público leitor do jornal Correio do Povo pela memória e pela toponímia da cidade. Como antes, é preciso lembrar que no ano de 1929, quando da publicação desta reportagem, Porto Alegre era um canteiro de obras, e vivia um ritmo de modernização inédito na sua história.

O texto traz pistas do uso e desuso de certos topônimos, mostrando o crescimento da cidade. Afinal, se antes as ruas e travessas levavam os nomes de seus moradores, indicando a pequenez do núcleo urbano, já no início do século XX eram gradualmente suplantado por outros referentes a personagens e a mudanças de regime nacionais. Ainda assim, permaneciam na memória e nos usos populares, sendo que alguns deles resistem até hoje.

“A historia da nossa Cidade através da denominação pittoresca de algumas de suas ruas mais antigas[1]

Um antigo becco mal-afamado, de ruidosa tradição na vida de Porto Alegre que deu logar a uma ampla e arejada arteria – O alto da Bronze, localizado no berço da Cidade e hoje praça de desportos, deve o seu nome tradicional a uma tal Felizarda que ali habitou – Nesse local foram lançados os fundamentos, depois abandonados, da egreja da Conceição – A historia rapida do becco do Leite, ha pouco desapparecido – Os varios nomes da rua Senhor dos Passos

Leitores do ‘Correio do Povo’ trazem a sua contribuição a estas reportagens que tanto interesse veem despertando

[Mai]s do que suppunhamos [tem] sido alcançado pela nossa reportagem de domingo ultimo em torno dos nomes primitivos de algumas das mais […] ruas de Porto Alegre, […] natural que tal se ve[rifique], pois, não só os saudos[ismo] dos antigos habitantes [ainda] teve alguns momentos de ascensão, com a recordação de velhos nomes quasi [esqueci]dos, como os proprios [represen]tantes das gerações mais novas acompanharam com interesse e com curiosidade aquellas reminiscencias da Porto Alegre que elles [conhec]em vagamente, através […]çadas descripções dos maiores.

[Ness]as condições, fomos […] pelo interesse ambi[…] continuar na chronica […] aquella reportagem, […] é certo que era nosso […] esmiuçal-a.

Vamos começar a nossa chronica de hoje por uma das ruas mais centraes da cidade – a General Camara – mais conhecida, ainda hoje, por Ladeira, que, apesar da sua localisação, já hoje não é conhecida pela sua nomenclatura anterior.

General Camara

Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da Rua General Câmara.
Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da Rua General Câmara.

Da rua da Praia até a da Ponte, rua do Ouvidor.

Da rua da Praia até a 7 de Setembro, Ladeira, que mais tarde se generalisou para toda aquella arteria.

Este trecho tambem se denominou becco do João Ignacio, ou becco da Garapa.

Estas denominações provieram-lhe de naquelle trecho ser vendida uma garapa que os entendidos reputavam a melhor da cidade e da qual hoje raro se lembram estalando a lingua gulosa.

Essa garapa era extrahida de um cannavial que João Ignacio Teixeira possuia no Caminho Novo, então arrabalde afastado.

Espirito Santo

Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da Rua Espírito Santo.
Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da Rua Espírito Santo.

Ainda hoje mais conhecida por becco do Imperio.

O seu nome primitivo era becco do Cemiterio, pelo facto de se localisar ella a dois passos do segundo cemiterio que Porto Alegre possuiu e que occupava mais ou menos o logar em que hoje está a praça Marechal Deodoro (Matriz).

Não ha muito, ainda, o ‘Correio do Povo’, em completa reportagem, informou os seus leitores de que nas recentes excavações para a construcção da nova Cathedral Metropolitana foram encontradas ossadas humanas que lembram a existencia daquella necropole.

Passou, depois, a chamar-se becco do Imperio em virtude da capella do Imperio localisar-se á esquina da rua da Egreja, face oeste.

"Beco do Império". Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.
“Beco do Império”. Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.

General Victorino

Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da Rua General Vitorino.
Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da Rua General Vitorino.

Mesmo para a novissima geração, esta rua, parallela á dos Andradas e que, começando á rua de Bragança, vae terminar na rua da Misericordia, mesmo para a novissima geração, diziamos, o seu nome é da Alegria.

Entretanto, o nome primitivo da rua General Victorino não foi esse.

Àquella via publica chamou-se, primeiro, rua do Arco da Velha e, mais tarde, da Prisão Militar, por nella estar localisada, como o proprio segundo nome indica, uma prisão militar.

Entretanto, o seu terceiro nome – da Alegria – foi o que ficou, não logrando apagal-o a denominação official de General Victorino.

Travessa Augustura[2]

Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da Travessa Angustura.
Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da Travessa Angustura.

Já não existe, fechada que foi, ha pouco, pelo predio que esta sendo occupado pela Energia Electrica[3].

Era ao lado do ‘Café Suissa’, começando á rua da Praia e indo terminar á rua Andrade Neves (rua Nova).

Entretanto, rarissimos conheciam essa ruella por travessa Augustura.

O seu nome popular era becco do Leite.

Primitivamente chamou-se becco do Barriga.

Depois, becco D. Ursula.

Mais tarde, becco do Lisboa.

Por fim, do Leite, por que ficou conhecido até o seu desapparecimento recente.

Por Augustura, denominação municipal é que ninguem, ou quasi ninguem o conhecia.

Todas aquellas denominações anteriores tinham origem em nomes de pessoas que os habitaram. O ultimo, Leite, era um alfaiate, cujo nome todo era Manoel José Leite.

Alto da Bronze

Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização do Alto da Bronze.
Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização do Alto da Bronze.

Não abrimos este capitulo com o seu nome actual – praça General Osorio – por que ninguem saberia do que se tratava, tão vivamente resistiu o nome tradicional de Alto da Bronze[4].

Essa praça, hoje de desportos, está localisada no berço de Porto Alegre e foi o coração da cidade nos seus primeiros dias.

Seus nomes anteriores são: praça Manoel Caetano, depois, Senhor dos Passos, mais tarde, Conceição, após, Ladeira de São Jorge e, por ultimo, antes de General Osorio, Alto da Bronze, pelo qual até hoje é popular.

O nome de Conceição lhe adveiu do facto de haverem ali sido lançados os fundamentos da egreja daquelle nome, depois abandonados, tendo o templo sido construido no local onde ainda hoje se encontra.

Alto da Bronze tem origem na autonomasia [sic] de certa mulher de fama, que ali morou e que se chamava Felizarda.

"Alto da Bronze". Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.
“Alto da Bronze”. Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.

Rua Paysandú

Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da travessa Paysandú, atual Caldas Júnior.
Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da travessa Paysandú, atual Caldas Júnior.

Hoje rua, sim senhores. Mas, não ha muito, travessa[5].

O nome por que, porém, foi mais conhecida essa via publica foi becco do Fanha, de terrivel memoria.

Habitados por mulheres de má vida, ponto habitual de marinheiros, teve o becco do Fanha o seu nome fulgurando nos mais memoraveis sarilhos, nas desordens mais rumorosas da cidade de ha cincoenta e mais annos.

Dizer becco do Fanha, ha mais de vinte annos, era dizer bernarda[6], conflicto, barulho.

Ha cerca de doze annos, já então com o nome de travessa Paysandú, começou a ser demolida para dar logar, dizia-se a uma linda avenida que se resignou a ser, afinal de contas, uma espaçosa e optima rua.

Seu nome primitivo foi becco do Ignacio Manoel Vieira e, depois, do Fanha.

Vejamos o que delle nos diz Augusto Porto Alegre em sua ‘A fundação de Porto Alegre’, 2ª edição, 1909:

‘Fanha era o appellido do taverneiro Francisco José de Azevedo, estabelecido no local, devido ao defeito da falla. Foi elle o primeiro morador, isto em 1800; edificou casa na rua dos Andradas, bem no centro da quadra, que então ia da rua Clara á rua da Ladeira; julgando necessaria a abertura duma outra rua, entendeu deixar a largura que hoje forma o becco do Fanha, onde construiu uma casa á moda do tempo, com rotulos[7] pintados de verde, que em 1895 foram demolidas por ordem da Intendencia.

"Rua Paysandú". Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.
“Rua Paysandú”. Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.

General João Manoel

Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da rua General João Manoel.
Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da rua General João Manoel.

Da rua da Egreja até a da Praia – rua Clara, nome por que até hoje ficou, toda ella, conhecida.

Da rua da Praia até a praia, becco dos Marinheiros, denominação que ha mais de trinta annos desappareceu.

"Rua Clara", ou General João Manoel. Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.
“Rua Clara”, ou General João Manoel. Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.

Senhor dos Passos

Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da rua Senhor dos Passos.
Planta de Porto Alegre de 1916. Mapoteca do IHGRGS. Em destaque, a localização da rua Senhor dos Passos.

Esta rua é das que perderam as suas denominações primitivas.

O nome official supplantou os tradicionaes.

Seu primitivo nome foi Becco do Couto, por ali morou, então, um velho Couto, muito conhecido.

Mais tarde passou a chamar-se Becco do Cordeiro[8], tambem em homenagem a um morador, um certo João Cordeiro.

"Rua Senhor dos Passos". Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.
“Rua Senhor dos Passos”. Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.

O interesse

Que estas reportagens estão despertando não podia ser maior, como acima dissemos.

A proposito da nossa chronica anterior, recebemos as seguintes missivas:

‘Sr. Redactor do ‘Correio do Povo’. Saudações. Como antigo morador da nossa bella cidade, acompanhei, com o maior interesse, o artigo illustrado que essa conceituada folha publicou, domingo, sobre as denominações de varias ruas da capital. Como velho conhecedor da cidade, porém, tenho a dizer que o articulista esqueceu de lembrar que a rua General Pantaleão Telles se chamou, e ainda hoje é conhecida pelo de Passagem. Sem mais, attentamente. Um velho morador da cidade.’

‘Porto Alegre, 15 de abril de 1929. Ilmo. Sr. Chronista Urbano do ‘Correio do Povo’. N. capital – Lendo vossa chronica publicada no ‘Correio’ de hontem, sobre os nomes antigos e modernos das ruas de nossa capital, deparei com varios senões que, como morador antigo desta cidade, peço venia para rectificar:

É certo que a rua Demetrio Ribeiro teve, em outroe tempos o nome de rua da Bahia, mas, não sómente da rua Pantaleão Telles á rua Vasco Alves, e sim até a General Canabarro.

Nesta ultima, existiu tambem o celebre ‘Becco da Ferraria’, notavel pelas desordens que, quasi diariamente, ali, se ‘realisavam’. Este becco era tambem conhecido por ‘Avenida[9] Alexandre Herculano’.

Quanto á ‘Cova da Onça’, se não me falha a memoria, ficava localisada no morro situado na esquina das ruas Demetrio Ribeiro e General Portinho e não na rua General Canabarro.

Tambem a rua General Salustiano é ainda hoje muito conhecida por rua da Passagem, facto este que o sr. Chronista deve conhecer perfeitamente e que só por uma omissão momentanea deve ter deixado de mencionar.

Sem motivo para mais, aguardo a continuação de tão interessante chronica e subscrevo-me, de v. s. patr.º e creado obrigado – Um Antigo Porto Alegrense.’

As observações destas missivas foram confirmadas pelo nosso amigo e prezado collaborador, o provecto professor Ignacio Montanha.”

Autoria desconhecida.

Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.
Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV.

Referências:

[1] Correio do Povo, 21/4/1929, p. 11. Hemeroteca do AHMMV. A grafia original foi mantida.

[2] Certamente aqui se trata da travessa Angustura.

[3] Muito provavelmente o imponente palacete da antiga Força e Luz, construído pelo proprietário do Club dos Caçadores e atualmente ocupado pelo Centro Cultural CEEE Érico Verissimo.

[4] A predileção por este nome se mantém até a contemporaneidade.

[5] A direção em que está implantada essa rua, cortando duas ruas principais (rua dos Andradas e rua Riachuelo) na direção Norte-Sul, é comum em vias de menor importância e mais estreitas, que também ficavam conhecidas como becos ou travessas. Aqui, o nome travessa parece ter um sentido pejorativo.

[6] Antigo sinônimo de motim, revolta.

[7] Provavelmente o autor refira-se às rótulas das casas coloniais portuguesas.

[8] Em outras fontes, também citado como beco do Cordoeiro.

[9] Aqui o termo avenida pode se referir não a uma rua larga, mas a um correr de casas pobres de aluguel, geralmente ocupando um único lote.

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