Um dos aspectos interessantes da modernização nas primeiras décadas do século XX foi sem dúvida a transformação radical que sofreram as vestes femininas. Na esteira não só da sua inserção no mercado de trabalho, que exigia trajes mais práticos no dia-a-dia, mas também do pensamento feminista, a reivindicação de formas de vestir cada vez mais livres por parte das mulheres passou também a reclamar o uso dos trajes masculinos, especialmente das calças.
Naturalmente, a idéia de mulheres usando calças perturbava muitas mentes esclarecidas, e de forma suficiente para suscitar a redação de textos tão longos quanto o transcrito abaixo, publicado na edição de 23/11/1924 do Correio do Povo. Nele, o escritor francês Georges Maurevert (1869-1964) arrola inúmeros exemplos de mulheres que se trajaram como homens, retratando-as como pessoas de modos bizarros e figuras pitorescas. Mesmo com toda a sua erudição, o que permeia o texto de Maurevert é uma mal disfarçada indignação diante da idéia de que uma mulher, ser “inferior” ao homem, pudesse se apropriar de uma peça tão distintiva de sua indumentária. Ora, não apenas isso, mas uma mulher usando calças também era um ato de borrar fronteiras claras entre diferentes grupos, coisa com que a sociedade ocidental nunca lidou com facilidade.
De qualquer forma, o escritor francês viveria o suficiente para ver mulheres trajando calças de forma cada vez mais frequente e normal em seu cotidiano: nos anos 1930 e 40, as calças já eram usadas como traje de lazer, e nas décadas seguintes elas chegariam para ficar.
“A mulher e o traje masculino[1]
Entre os assumptos que, modernamente, estão merecendo a attenção dos sociologos figuram o feminismo e a moda, que não são, como geralmente se pensa, pretextos para ‘boutades’[2] mais ou menos interessantes e motivos para divagações de chronistas elegantes nas secções especiaes dos noticiarios mundanos. Sobre o feminismo escreveu Emilio Faguet um livro sensato e documentado, collocando o problema nos seus justos termos e mostrando os perigos sociaes dessa doutrina levada aos extremos.
Quanto á moda é certo que reflecte ellas as idéas ambientes e não depende exclusivamente da phantasia ou do capricho das costureiras. Assim, num bello trabalho que Dupont escreveu sobre as modificações da indumentaria na França, mostrou elle como as modas introduzias pelo romantismo nada mais foram do que um reflexo das idéas de então, nas quaes se surpreendia a tendencia para fazer resurgir o espirito cavalheiresco da idade media, com o seu amor pelas aventuras e o culto apaixonado da mulher. Os romances de Walter Scott, na Inglaterra, e algumas obras de Victor Hugo, por elle influenciado, na França, crearam uma atmosphera favoravel ao renasciento das preferencias que caracterisaram seculos já passados. Conta-se, por exemplo, que George Sand[3] trouxe durante algum tempo traje masculino, exhibindo calças talhadas em sêda verde. A explicação desse facto não é, entretanto, difficil. Nos romances de aventura, que estavam então em voga, não raro a heroina se trajava como homem para realisar uma fuga amorosa do castello em que o pae, sisudo e tyrannico, a tinha não raro sequestrada, ou para fugir de uma fortaleza disfarçada em varão. Não é, pois para estranhar que George Sand, que foi um dos chefes do romantismo em França, quisesse encarnar na vida real a bizarra protagonista de algum de seus romances.
Ha pouco, nos Estados Unidos, o governo consentiu que em alguns collegios de meninas fosse permittido o uso de vestes masculinas. O resultado, porém, sob o ponto de vista moral, foi tão desastrado, conforme informações dos próprios professores, que a permissão não tardou em ser revogadas, restabelecendo-se o classico vestido. É verto que alguns jornaes modernos noticiam a adopção, por parte de algumas mulheres, da indumentaria masculina. Mas quem são ellas? Actrizes de cinema, escriptoras e pintoras extravagantes, feministas victimas de um furioso jacobinismo, creaturas que, geralmente, pelo seu desequilibro nervoso não podem servir de paradigma para a[s] pessoas sensatas e ponderadas.
Ha dias, “La Nación”, de Buenos Aires, estampou em suas columnas um interessante artigo do escriptor francez Georges Maurevert, sobre as tentativas que se têm verificado atravez da historia para accommodar ás mulheres o traje masculino. É este o trabalho do escriptor francez, que traduzimos especialmente para figurar nesta folha:
‘A mulher não vestirá roupa de homem, nem o homem vestirá roupa de mulher, porque abominação será a Jehovah, teu Deus, quem tal fizer’. Deuteronômio, XXII, 5.
São Nicolau I, o Grande, foi um papa famoso. Combateu a heresia e anathematisou o illustre patriarcha Plotius. Censurou os bispos de França e teve até a honra de converter ao catholicismo Bogoris, rei dos bulgaros e seu povo. No emtanto, levava muito pouco em conta os ensinamentos da Biblia. Eis a prova disso:
Depois de sua conversão, os bulgaros enviaram-lhe embaixadores para fazer-lhe algumas perguntas, entre as quaes havia esta: ‘É admissivel que a mulher use calças como um homem?”
Em vez de ouvir, com indignação esta pergunta, respondendo-a com as palavras do Deuteronomio e que serve de epigraphe a este artigo, Nicolau o Grande assim disse:
‘A eu vêr, isso é uma pergunta secundaria. O que eu desejo vêr mudar são os vossos sentimentos, e não o vosso vestuario. Para mim, tanto faz que vossas mulheres usem calças, como saias. O que me interesse são a fé e as bôas obras. Tendes costues que não são os dos outros christãos e receiaes que isso não seja lavado á conta de peccado, pois sabeis que, em nossos livros, está escripto serem as calças feitas para os homens, e não para as mulheres. Não vos inquieteis com isso. Agi segundo vosso entender. Conservae vossos antigos costumes, ou adoptaes os nossos, pois de certo modo, vos tornastes christãos. Que vós ou vossas mulheres continuem a usar ou abandondem as calças, isso em nada contribuirá para vossa salvação, nem augmentará vossa virtude.’
O que importa – acabou por dizer o bom Papa – é que a fé vos dá, assim como ás vossas mulheres, contra o peccado, ‘calças espirituaes’. (femoralia spiritualia).
Lembro a advertencia de Nicolau o Grande, ao comprovar com que facilidade começam as mulheres a usar hoje em dia essas calças que lhes foram tão disputadas. Por exemplo, não ha quasi uma pelicula cinematographica, produzida nos Estados Unidos, que não nos offereça o espectaculo de uma jovem ostentando, graciosamente, o chapéu redondo, a sobrecasaca, as calças de montaria e as polainas.
A masculinisação do vestido parece correr parelha, nas mulheres com seus exitos policitos. Uma das mais notaveis suffragistas, Howard Warren, previu a época em que os trajes femininos seriam quasi parecidos com os masculinos. ‘Nada de garridice[4] para conseguir dos homens os privilegios que, daqui em deante, a lei conferir, – dizia – ‘bastaria usar, em vez dos bordados e dos vestidos custosos e incommodos de agora, trajes amplos, simples, de côr escura, semelhantes aos do homem’.
Mas, outra feminista, Ethel Stewart, foi muito mais radical. Pedia o completo desapparecimento do traje… Não admittia a saia calção e tampouco a calça solta a zuave… Não. Mistress Stewart reclamava a calça completa.
‘Libertemo-nos das tyrannias da moda – gritava ella – repillamos as saias immoraes, abandonemos nossas fazendas impuras… A pretexto de elegancia, impoem-nos ruinosas mudanças de vestidos. Pois bem. Eu sustento que, com duas calças por anno, uma mulher pode vestir-se decentemente. Porque deixar aos homens o monopolio dos ternos baratos?… Depois dos nossos espiritos terem tido o valor da liberdade, por que não levar adeante o nosso triumpho, até libertar nossos corpos? É preciso adoptar uma reforma definitiva para o vestuario feminino…’
Parece que taes exhortações e o accesso, cada vez mais pronunciado, das mulheres á vida politica, começam a produzir os seus fructos, pelo menos nos Estados Unidos.
Assim foi que, no Estado de Wisconsin, o governador Blaine assignou, o anno passado, a lei votada pelo legislativo local, concedendo ás mulheres os mesmos direitos civis que aos homens. Essa lei confere á mulher ‘o direito de usar trajes de homem, se isso fôr de seu desejo’.
E neste verão, se poude vêr, em Londres e Paris, uma jovem americana, Miss Jane Burr, ardente propagandista do traje masculino, passear pelo Regent-Circus e pelos grandes boulevards, com traje de cyclista, quasi igual ao que nossas companheiras usavam ha um quarto de seculo.
Com um pequeno esforço, mais, creio que o traje masculino terá, para as mulheres, direito de cidadania. Basta simplesmente que um grande modista lance a moda… Neste proporsito, segundo se sabe, Poiret, um dos arbitros das elegancias parisienses, foi, neste verão, a Meurthe e Mosele, para se certificar em pessôa o modo pelo qual as operarias das salinas de Dombasle, vestidas de home, por motivo de commodidade profissional, usavam essa vestimenta. Tal indumentaria dá, ao que parece, ás que ainda são jovens, um ar muito cortez, tanto mais que é acompanhado de um gorro alpino, posto com muita arrogancia.
O grande modista voltou perplexo de sua viagem… E é que sua elegante clientela não se compõe unicamente de damas jovens e bonitas… E diabo: temos de contas com… as outras!… O traje masculino para estas, seria, sem duvida, um desastre… Por isso, o nosso grande modista reservou sua decisão.
Para falar a verdade, as mulheres – pelo menos na França – nem sempre aguardaram as licenças da lei, ou as decisões dos modistas, para usar calças. Sem falar nas mulheres-soldados, na grande Joanna d’Arc, ou nas heroicas irmãs Ferning, quantas vestiram roupas masculinas!…
Na época de Luiz XIII, estava em moda, entre as mulheres, usar o bonito traje de cavaleiro. Essa vestimenta assentava, ás mil maravillhas, na duquesa de Chevreuse, a formosa intrigante, cuja energia e cuja bravura não tinham igual. O traje masculino ficava-lhe tão bem, que Tallemant des Réaux deu testemunho disso, em versos famosos.
E a celebre novela de Theophilo Gautier – ‘Mademoiselle de Maupin’ – nos faz saber, de alguma forma, que esta admiravel mulher, esgrimista e cavalleira, usava o traje masculino.
Demais, está-se em dizer que, nos tempos da Revolução, direito de usar calças foi uma das primeiras medidas reclamadas por certas mulheres exaltadas. ‘As Petições das Damas á Assembléa Nacional’, apparecidas em 1789, pouco tempo depois de ser tomada a Bastilha, contém alguns artigos bastante pittorescos:
‘1º. Todos os privilegios do sexo masculino estão abolidos completa e irrevogavelmente em toda a França.
2º. O sexo feminino gozará, sempre, da mesma liberdade, das mesmas vantagens, direitos e honras que o sexo masculino…
3º. As calças já não farão parte exclusiva do sexo forte, e sim cada sexo terá direito de usal-as.
4º. Quando um militar houver compromettido, por covardiam a honra franceza, não será degredado, fazendo-o usar trajes femininos, e sim será castigado, declarando-o de ‘genero neutro’.
Suspendo, aqui, a citação da ‘Petição das Damas”.
A grande liberdade que reinou na França, relativamente ao vestuario, durante a Revolução e, sobretudo, na época do Directorio, originou certas licenças que levaram o legislados a promulgar a ordenação de 16 Brumario do anno IX, a qual obrigava toda mulher desejosa de vestir-se de homem a pedir, parta isso, autorisação ao prefeito de Policia. Esta ordenação não foi derrogada, e, ainda hoje, está em vigor.
Entre as mulheres que vestiram roupas masculinas, a mais celebre foi Jorge Sand, que ostentou, no anno de 1830, umas calças de panno preto, uma casaca ao estylo das da Idade Media e uma touca co pluma branca. Como roupa de dentro, usava peças que as gravuras popularisaram: camisa de homem, gravata preta e uma bata de seda amarella, que lhe cahia sobre as babuchas turcas côr de sangue.
Foi encontrada a ‘licença para usar roupa de homem’, concedida a Margarida Bellanger, amiga de Napoleão III. Ei-la:
‘Paris, 9 de janeiro de 1861. Eu, prefeito de Policia, autoriso a senhorita Belanger (Margarida), domiciliada no ‘boulevard’ dos Capuchinhos, nº 39, a vestir-se de homem, por motivos de saude; porém, não poderá apresentar-se com esse traje nos espectaculos, bailes e outros logares de reunião franqueados ao publico. A presente autorisação só é valida por dois mezes. Pelo prefeito de Policia e por sua ordem, o secretario getral: (assignado) Jarry.’
‘Signaes pessoaes: estatura, 1,60 metro; cabellos e sobrancelhas castanhos; olhos cinzentos, nariz mediano, etc.
As ‘razões de saude’, allegadas para a abstenção dessa licença eram certamente, imaginarias. É de suppôr que o favor, que beneficiava a amigade Napoleão III. fôsse concedida por ordem superior.
Madame Rosa Bonheur, a celebre pintora de animaes, usava, igualmente, um traje masculino: porém, um traje commodo e desprovido, totalmente, de garridice, possuia ella, em Nice, uma magnifica propriedade no bairro Bornala, e muitos se recordam, ainda, de tel-a encontrado no ‘Passeio dos Inglezes’, com calças de velludo e a larga blusa azul dos arrieirios. Era esse seu traje de trabalho. Quando se via obrigada a alternar com a sociedade, Madame Rosa Bonheur punha uma casaca e uma saia curta, de velludo negro, guarnecida com galões. Não conheceram outra indumentaria nesta grande artista, que levava uma vida muito retraida de trabalho continuo.
Outra mulher celebre que, em quasi toda sua vida, usou traje de homem, foi Madame Jane Dieulafois, a sabia exploradora. Para acompanhar o marido nas missões archeologicas a Marrocos, Egypto e Persia, vira-se obrigada a usar traje masculino. Adoptou-o por completo, quando contava vinte e cinco annos de idade e, e toda sua vida, não usou outro. Ao morrer, em 1916, foi enterrada com traje de etiqueta, levando na lapela a roseta de official da Legião de Honra.
Outra dama que se vestia de homem e que teve a honra de falar, a menudo, na Bibliotheca Nacional de Paris, onde estava acostumada a trabalhar, foi Madame Marc de Montifaud. Era uma novelista que se especialisára na publicação de obras levianas, até um pouco eroticas. Laurant Tailhade retratou-a em seus ‘Phantasmas de Antanho”. Apresenta-a com sua cabeça redonda, cabello lizo para traz, uma risca ao meio, olhos de côr azul pallido, um rosto pintado e enrugado, dedos carregados de anneis. Com a jaqueta apertada, as calças estreitas, á antiga, e sua varinha, dava ares de um velho collegial inquietante.
Apezar desse ridículo vestuario e das suas obras equivocas pelas quaes foi até citada á Policia correccional, era uma mulher muito digna e honesta, que tinham segundo assevera Tailhade, ‘uma existência de matrona romana’. Em sua casa, com a mesma mão que escrevia gracejos um pouco livres, assoava no nariz a seu ultimo filho ou tirava a espuma ao caldo. Essa criatura singular morreu ha doze annos, só deixando pezares na memoria de todos que a conheceram.
Uma mulher que se póde ver, hoje, em dia, com calças pelas ruas de Paris, é a célebre marqueza de B… Ha uns quinze annos, foi-me apresentada num palco de artistas de El Dorado de Nice, por Colette Willy, que ainda não tinha trocado o theatro pela penna. Parecia um homemzinho extranho, vestido com um terno cinzento perola, que lhe dava um aspecto de comparsa de revista. Parecia muito timida e falava com toda a suavidade. Era notavel o contraste entre a moista de suas attidutes e a audacia de sua indumentaria.
Para terminar, podemos recordar que a liberdade no vestir foi reclamada nas Camaras Francezas, em 1887, pelas senhoras Astié de Valsayre e Martha de Vally, duas conhecidas suffragistas. O texto de uma petição, feita em nome da Liga da Emancipação da Mulher, parece ter inspirado o das feministas americanas.
‘Visto como as modas só foram feitas para as mulheres ricas – diziam ellas – isentas de todo trabalho e que, por conseguinte até a saia mais simples, constitue, ás vezes, um obstaculo a certas occupações, um entrave ao trabalho, e posto que esse entrave é prejudicial áquellas que têm a necessidade de ganhar a vida:
A ‘Liga da Emancipação da Mulher’ resolve obter a liberdade de se vestir por todos os meios possíveis.
Ai! as francezas ainda não obtiveram essa liberdade e quanto a isso de ‘entrave prejudicial ao trabalho’, os costumeiros acharam interessante lançar a moda do ‘vestido travado’.
Infelizmente para as feministas exaltadas, que reclamam a igualdade absoluta entre os dois sexos, parece que essa igualdade jamais se extenderá á indimentaria. É certo que as necessidade profissionaes – a aviação, a caça, o alpinismo, todos os exercicios sportivos, pelos quais se interesse, mais a mais, o bello sexo – nos acostumaram a ver, cada dia mais, a mulher com trajes masculinos. Mas isso não passará de um disfarce pouco mais ou menos transitorio. A mulher perderia muito, se abandonasse seu vestido e os graciosos adornos que a distinguem do homem e que mantêm seus encantos.
Sempre haverá pobres e infelizes creaturas, para as quaes o facto de ser mulher constituirá uma catastrophe, no dizer dessa ‘amazona’ Miss Natalia Clifford Barney, grande amiga e uma das inspiradoras de Remy de Gourmont.
Mas, a maior parte das mulheres se resignam, de boamente, á sua sorte e não pensam em se disfarçarem de homem.
Recentemente, uma revista dinamarqueza dirigiu a seus leitores, um inquerido sobre as condições que deve preencher ‘a mulher perfeita’. A resposta premiada foi esta: ‘A mulher perfeita é a que lamenta nunca não ser homem’.
Com segurança, esta phrase de bom senso seria a que reuniria, e todos os paizes, a immensa maioria dos suffragios das mulheres intelligentes e sabias’.”
Referências:
[1] Correio do Povo, 23/11/1924, s/p. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
[2]Em francês, “piada”.
[3]George Sand era o pseudônimo da escritora Amandine Aurore Lucile Dupin (1804-1876), uma das maiores romancistas francesas.
[4]Apuro excessivo no trajar.