Detalhe da reportagem do Estado do Rio Grande mostrando um croquis da planta baixa do Cine-Theatro Variedades. Nele, vê-se a indicação da sala secreta onde o "baccarat" era jogado.

A sala secreta da jogatina

Ah, novamente o famoso Clube dos Caçadores entra em cena nas páginas sobre os problemas urbanos! Tendo mudado seu nome para Cine-Theatro Variedades, o casarão do século XIX era considerado o mais luxuoso centro de diversões noturnas, quer dizer, masculinas, da Porto Alegre das primeiras décadas do século XX. Era frequentado por filhos de famílias ricas, políticos e grandes estancieiros em visita à capital, e talvez por isso não fosse tão difamado quanto os pequenos bordéis vizinhos na rua Andrade Neves.

Contudo, no início da década de 1930 as duas principais atrações do local estavam sob a mira da polícia: a prostituição e os jogos de azar. Mas talvez nem tanto: de acordo com esta reportagem do Estado do Rio Grande, a policia fazia vistas grossas ao “bacarat”, que se jogava numa sala secreta do estabelecimento. Como no caso da prostituição, é possível que o jogo dos endinheirados da cidade também merecesse um tratamento diferenciado e, segundo a reportagem, até a tolerância dos delegados de polícia!

No final dos anos 1920 e início dos 30, a polícia fazia um esforço de retirar as casas de prostituição da área central de Porto Alegre, e essas operações eram acompanhadas de perto pela imprensa, que as reportava nos principais jornais da cidade. A idéia era concentrar a localização de moradia e trabalho das prostitutas no Beco do Oitavo e no Beco do Jacques1, causando a desvalorização dos imóveis dessas duas vias e muitas reclamações de moradores e proprietários.

“Novamente em fóco o Cine-Theatro Variedades2

O ‘bacarat’ continúa a ser jogado francamente, numa sala secréta

A polícia está no par disso tudo, não se animando, porém, a tomar uma providência

A teimosia inqualificável dos proprietários do Cine-Theatro Variedades em manter ali o jogo de azar, denominado ‘bacarat’, está a exigir uma severa providência por parte do govêrno do Estado.

É daí que essa medida deve partir, visto ser inutil appelar para a policia do desembargador Florêncio de Abreu, apezar de ser esta, como todos sabemos, a única a quem compete reprimir a jogatina.

As nossas autoridades mostram-se impotentes para exterminar com os jógos de azar em Porto Alegre.

Quer assim nos parecer, pois de outro modo não se explica a inércia da policia em consentir que o ‘bacarat’ continue a ser jogado francamente naquelle centro de diversões nocturnas.

Há tempos, em circumstanciada reportagem, mostramos ao publico o que se passava no antigo ‘Centro dos Caçadores’ com relação à jogatina.

Pois bem. Há quem affirme que, apezar de toda essa campanha, a policia nem siquer se mexeu para pôr termo a esse desmando, de maneira que o ‘bacarat’ continuou ali a ser jogado até hoje.

Limitou-se, sim, a espalhar aos quatro ventos que estava sendo ludibriada em sua boa fé e, por isso, havia ordenado o fechamento do jogo.

O facto é que actualmente, como acabamos de constatar, o Cine-Theatro Variedades mantém ainda o ‘bacarat’ para os seus numerosos ‘habitués’, principalmente os que vêm do interior do Estado.

A sala destinada ao ‘panno verde’, como se vê no ‘cliché’, fica afastada do salão de danças. Para ali se chegar é necessário atravessar diversos compartimentos, caminho esse somente conhecido pelos profissionaes e jogadores.

Os mocinhos da cidade não tem ali entrada, não somente por não possuirem dinheiro sufficiente, mas, principalmente, por baterem com a lingua nos dentes…

Isso não vem ao caso, pois que todos elles sabem da existência da jogatina nos ‘Caçadores’. Não querem denunciar para não prejudicar o seu proprietário.

Admittimos que um delles, descontente, levasse o facto ao conhecimento da policia.

De nada lhes adeantaria, pois ella não só está ao par de tudo, como também faz ouvidos de […]ador.

Para aparentar, de quando em vez apparece nos ‘Caçadores’ o delegado encarregado da repressão ao jogo, acompanhado de seus ‘secretas’. Olha para todos os lados, retira-se, após, sem deixar de dizer: ‘não há nada. São intrigas…’

Entretanto, consoante instruções recebidas, os empregados do ‘cabaret’, ao pressentirem a approximação da policia, queremos dizer, sómente do delegado-auxiliar, apertam immediatamente num botão secreto.

Uma campainha tilinta na sala do ‘bacarat’. É o signal de advertência […] que estão jogando.

Todos, sem excepção, abandonam apressadamente a sala e correm para outro compartimento.

O jogo transforma-se como por encanto. De ‘bacarat’ passa-se para ‘pocker’ que, apezar de se prestar para ladroeiras, é permittido pela policia.

Todos se acotovelam ao redor de uma mesa, fingindo que jogam calmamente o ‘pocker’, porém, interiormente nervosos, à espera do representante da lei. Este, até agora, não se animou a apparecer na caverna.

Então, após alguns momentos, passado o ‘perigo’, volta o ‘bacarat’ a […] na sala que lhe é destinada.

Não precisamos ir além para demonstrar aos leitores a existência da jogatina no Cine-Theatro Variedades.

Basta unicamente olhar para o eschema que estampamos para se convencer da verdade.

Essa planta tem tambem serventia para a policia que por ella se poderá guiar para chegar ao ‘panno verde’.

Alguns delegados districtaes, assiduos frequentadores do ‘Cine’, conhecem de olhos fechados todo esse intrincado caminho.

Entretanto, esquecem-se que são representantes da lei, dando de ombros.

Quanto a esses delegados, não há que temer.

Os empregados do ‘cabaret’ estão livres de apertar na secreta campainha de alarme, quando elles apparecem.

Cumprimentam-no visivelmente, dizendo com os seus botões: ‘Estes são dos nossos’…”

Autoria desconhecida

Referências:

1 Respectivamente, a atual avenida André da Rocha e a rua 24 de Maio com sua escadaria.

2 Estado do Rio Grande, Ed00270, 07/09/1930, p. 8. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

Deixe um comentário