Andradina América Andrade de Oliveira (Porto Alegre, 1870 – São Paulo, 1935) foi uma líder feminista, dramaturga, escritora, jornalista e conferencista de destaque na Porto Alegre da virada do século. Estudou no educandário da também escritora porto-alegrense Luciana de Abreu, e em Bagé, fundou em 1898 o jornal O Escrínio, que contou com muitas outras colaboradoras de todo o Brasil. De volta em Porto Alegre, passa a dirigir o jornal Correio de Porto Alegre, em 1901. Mulher dinâmica e agitadora cultural, Andradina também escreveu peças de teatro, que eram anunciadas no jornal O Exemplo, da comunidade negra de Porto Alegre, e, em 1910, publica O Perdão, talvez o primeiro romance urbano passado em Porto Alegre com características modernas, como o uso da linguagem popular.
Além de retratar o linguajar dos mais pobres e o desejo feminino, O Perdão traz também belíssimas cenas do quotidiano de Porto Alegre no início do século XX, como na passagem abaixo:
“Raiara um esplendoroso dia. O céu muito alto, muito azul, muito claro. Andavam no ar estrofes de perfumes. O Guaíba, de uma limpidez de espelho, retratava a face iluminada do firmamento. E com as ilhas viçosas, de nuances verdes e de vários matizes de flores róseas ou brancas, e com os seus barcos leves, esguios uns, pesados e chatos outros, e os iates de longos mastros e velas encardidas, e os múltiplos vapores, e os paquetes de costados largos e alterosos canos, era o rio uma dessas pujantes aquarelas que uma vez encaixilhadas o nome guardam de um artista.
A cidade banhada de sol tomava vida, um aspecto extraordinário.
De um branco puríssimo as duas torres da Igreja das Dores, paralelas e cândidas, apontavam o infinito, como dois pontos exclamativos inversos, síntese das preces todas de mil almas angustiadas que ali o bálsamo da fé buscavam para as suas chagas.
Lá numa ponta da cidade engalanada de sol, erguia-se a Casa de Correção, oficina de trabalho, onde as almas transviadas e fracas se robustecem na esperança da regeneração e do perdão da sociedade.
A rua extensíssima e movimentada, a Voluntários da Pátra, cingia uma parte da cidade com a sua larga faixa de progresso, entre os murmúrios do rio azul e os rutilamentos do céu claro, como se agora é que fosse um caminho novo[1], com apitar animador das suas máquinas, a série de obeliscos das altas chaminés, com os mil ruídos das engrenagens dos seus engenhos, com a vida imensa e movimentada das fábricas, e com a assombrosa vitalidade do seu comércio poderoso. E a agitação dela era feita de tudo isso e mais as vozes dos que transitavam e o rumor dos bonds que se cruzavam, e o rodar atroador dos carros e das carroças, governadas estas por homens de peitos largos, pele dura, requeimada, como aqueles outros, suarentos, vergando os ombros hercúleos ao peso das sacas de trigo que há de amassar o pão de cada dia, o amargo pão da vida para muitos.
O mercado[2], o empório que o ventre insaciável da grande cidade não esvazia nunca, era era rodeado de dezenas de carroças, atulhadas umas de verdura fresca, outras de fruta sazonada. A Doca coalhava-se de barcos, enegrecidos, velhos, desbotados. Aqui o carvão enchendo uma porção deles, ali as frutas da estação, de preferência as melancias de casca lisa e verdoenga ou listrada, acolá outros, altos de fragmentos de outros cadáveres de vegetais que tiveram certamente a graça de flores no seio das matas e que, benéficos ainda, vêm aquecer os lares para o aconchego terno da família.
E o dia avançava cada vez mais belo, cada vez mais rútilo.
Pelas ruas a vida da cidade se desenrolava na realidade das coisas.”
Pp. 261-263
Agradeço de coração à querida amiga Amanda Zampieri por ter me presenteado o livro O Perdão, em 2010, e assim me apresentado à personalidade e obra de Andradina de Oliveira.
Referências:
OLIVEIRA, Andradina. O Perdão. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2010.
Notas:
[1] Aqui, a autora faz um trocadilho com o nome popular com que a avenida Voluntários da Pátria era conhecido à época: “Caminho Novo”.
[2] O Mercado Público.