A virada da década de 1920 para 1930 encontrou Porto Alegre virada num grande canteiro de obras. Os becos estreitos eram abertos em grandes e largas avenidas bem iluminadas, e a imprensa travava uma campanha duríssima contra os casarios antigos, clamando pela sua demolição.
A reportagem abaixo, publicada no Estado do Rio Grande, é um apanhado de tudo que se queria para a cidade: varrer os antigos prédios, fossem eles sobrados ou “chalets” de madeira, da paisagem urbana, colocando em seus lugares modernos “palacetes” de múltiplos andares. De fato, o prefeito anterior, Otávio Rocha (1877-1928), havia mesmo criado uma isenção de impostos de dez anos para a construção de prédios com mais de dois andares, visando estimular a renovação e a verticalização da paisagem urbana através da iniciativa privada.
O conceito de patrimônio histórico, no qual hoje certamente colocaríamos o que o jornalista anônimo qualifica como “pardieiros”, ainda estava a algumas décadas de ser consolidado no Brasil. Assim, muito do que se tinha de construções da Porto Alegre do século XIX e início do XX terminou sucumbindo às ondas modernizadoras.
“Aspectos da cidade[1]
As construcções modernas e os pardieiros existentes nas ruas centraes de Porto Alegre
Uma justa pretensão dos que se interessam pelo embellezamento da cidade – A construcção de mais um edifício de sete andares – O quartel dos bombeiros offerece um espectáculo desagradável aos olhos dos forasteiros
De cinco annos para cá, Porto Alegre passou por uma transformação geral.
A fébre das construcções augmentou espantosamente, como por encanto. Os immundos beccos, que desembocavam na nossa principal arteria desappareceram por completo. Abriram-se novas avenidas para desafogar o tráfego de veículos, cada vez mais intenso em Porto Alegre.
Remodelaram-se os jardins, dotando-os de ampla illuminação. Os velhos e anti-esthéticos combustores foram retirados para darem lugar aos modernos candelabros ‘Nova-Lux’.
Vários outros melhoramentos foram aos poucos, introduzidos em nossa capital, que, afinal, saiu da apathia em que se conservara há quási […]nta annos.
Mas, com todo esse progresso, em que teve parte saliente a iniciativa particular, não querendo desmerecer os esforços da municipalidade em prol do embellezamento, alguma cousa mais se tem ainda a fazer para completar essa obra que tanto interessa os porto-alegrenses.
Os pardieiros da rua dos Andradas
Em contraste com os novos e alterosos edifícios que estão surgindo, a sua principal artéria se encontra […] de prédios antiquados e anti-esthéticos, verdadeiros pardieiros.
É isso uma cousa que irrita os habitantes da cidade, vaidosos por […] sua principal rua, o ponto de reunião elegante da sociedade, à admiração dos que nos visitam, vindos de cidades longínquas.
Verdade é que muitos desses pardieiros foram derrubados para darem logar aos actuaes edifícios modernos.
Existem, porém, innumeros outros, que bem poderiam desapparecer e que, no entanto, ainda se conservam intactos, recebendo, de quando em quando, alguma mão de pintura, como se se pudesse torná-los mais bellos e, por conseguinte, collocá-los ao nível dos modernos edifícios.
Um pouco de bôa vontade por parte de seus proprietários e esse inconveniente seria removido.
Esses casébres, situados no ponto central da cidade, são muito disputados apesar de seus exhorbitantes alugueres.
Dão elles óptimo rendimento aos que os possuem e isso, naturalmente, não constribue para que não sejam demolidos tão depressa, como se desejaria.
Além de tudo, muitas dessas casas não offerecem hygiene e conforto aos seus moradores, se bem que exteriormente se apresentem renovadas com suas pinturas e letreiros.
A Directoria de Hygiene poderia fazer suas visitas para esses prédios, verdadeiros ninhos de ratazanas.
A partir do palacete construído à rua dos Andradas, existem nada menos de cinco casas daquella natureza, que vão até à [rua] Uruguay.
Junto à Casa Clark nota-se um casebre destes, occupado por uma firma importante, e que mais se parece com uma ‘caixa de phosphoros’.
Encostado a este vem outro casebre que não lhe fica atras.
Numerosos outros se encontram na rua principal de Porto Alegre, principalmente do lado do passeio que vae da travessa Itapiru até à rua Marechal Floriano.
“Chalets’ à rua das Flores[2]
Parece incrível existirem, ainda no centro da cidade, ‘chalets’. Estão elles situados à rua das Flores, a poucos passos da dos Andradas.
Ultimamente, tres delles foram demolidos, existindo em seu lugar lindas edificações.
Entretanto, existem ainda, ali, mais duas casas de madeiras, que outrora serviam de trapiches. Hoje, aproveitaram-nos para depósitos de gêneros alimentícios.
Estarão sendo conservados para reliquia?…
O quartel do corpo de bombeiros
Situado num largo, ponto de grande movimento commercial da cidade, cujos fundos confinam com uma importante avenida, que é a Júlio de Castilhos, vê-se o quartel do Corpo de Bombeiros.
Essa útil corporação está localisada, há muitos annos, no velho casarão de madeira da praça Visconde do Rio Branco[3]. Estando, como acima dissemos, situado num largo, attráe logo os olhares de todos que por ali transitam, mórmente dos forasteiros, offerecendo isso um espectáculo degradante.
De facto, trata-se de um ‘chalet’ de grandes dimensões, porém de pouca altura, coberto por telhas de zinco.
O seu interior é acanhado, não se prestando para o fim a que se destina. Os possantes caminhões dos bombeiros ali penetram com difficuldade, com graves prejuízos para o serviço.
Os arredores do casarão de madeira são mal cuidados, principalmente na parte que dá para a avenida Júlio de Castilhos. Os carroceiros e vagabundos, durante o dia, fazem ali seu ponto de descanço e lançam ao sólo cascas de frutas e restos de comida.
Esse lugar poderia ser transformado numa linda praça si não fôsse, por certo, esse trambolho, que é o quartel dos bombeiros.
Já se cogitou de levantar um bello edifício para essa valorosa corporação, com o auxilio das companhias de seguro e da municipalidade.
Passaram já alguns pares de annos e essa idéa, infelizmente, não vingou. Procurámos saber as causas desse embaraço e fomos informados, por pessôas autorizadas, que a construção de um novo quartel não sairá tão cedo, devido, unicamente, à falta de dinheiro.
Se assim fôr, realmente, não só soffrerá com isso o Corpo de Bombeiros, como também a cidade, que se vê prejudicada, num dos seus pontos de grande futuro, por esse pardieiro.
Sómente um incêndio nesse casarão de taboas, poderá remover tal empecilho o que será diffícil, por se encontrarem ali os valorosos combatentes do fogo…
Novas construções
Como vem publicando ultimamente o ‘Estado do Rio Grande’, grandes edificios estão sendo construídos nesta capital, principalmente à rua dos Andradas e immediações.
Entre os palacetes já concluídos e que estão por concluir, contam-se a Galeria Chaves, e os de propriedade dos drs. Bastian Pinto, Gastão de Oliveira, sr. Luiz Chiaradia, Previdência do Sul, este de doze andares; e Hotel Schmidt, na rua dos Andradas; palacete Alexandre Alcaraz, à rua Andrade Neves, Bier e Ulmann, à rua das Flores, e muitos outros.
Mais um edificio de sete andares
Á rua General Câmara, ao lado do Cáes do Porto, foi iniciada, seis mêses atráz, a construção de um edifício de sete andares.
Esse prédio, como se vê pelo ‘clichê’, estampado, é de lindo estylo, estando já concluidos os dois primeiros andares, um dos quaes é occupado pela Sociedade de Moinhos do Rio Grandense.
O projecto é da firma Dycherhoff e Widmann, sendo que o prédio é de propriedade da exma. Sra. D. Elvira R. C. de Oliveira.
Todo elle é de cimento armado. Os quatro primeiro andares serão alugados para escriptórios e os restantes para moradia de familias.
As obras deverão ficar concluidas, no fim do mês de julho próximo.
Localização do edifício referido na matéria, e que se encontra até hoje na rua General Câmara.
A municipalidade e o progresso
Com o fim de incentivar as modernas construções, o extinto dr. Octávio Rocha, baixou um decreto isentando do pagamento de impostos os proprietários que levantassem casas de três e mais andares na nossa principal artéria.
Essa concessão, entretanto, foi reduzida para cinco annos, medida essa que foi recebida com desagrado.
A propósito, o sr. Luis Chiaradia, conforme noticiámos, há dias enviou um longo memorial ao edil, solicitando fôsse concedido o benefício de dez annos para a isenção do imposto do prédio que está construindo à rua dos Andradas e que se destina exclusivamente à residência de famílias, empregados de bancos, do commércio e funcionários públicos.
Ainda não foi dada solução ao requerimento daquelle industrialista, que foi enviado ao Conselho Municipal, para dar parecer.
Segundo ouvimos de muitos interessados, todos são de opinião que deve persistir a lei Octávio Rocha, para os que se interessam pelo embellezamento da capital.
Voltando – dizem elles – essa lei não só trará vantagens aos proprietários dos grandes prédios como, também, facilitará novas construções dessa natureza.
O prazo de cinco annos é insufficiente. Muitas vezes, um edifício leva um anno ou mais para ficar concluido, de maneira que resta pouco tempo para o proprietário gozar de tal beneficio.
A municipalidade não deve crear embaraços ao progresso da cidade e sim favorecer o mais possível as iniciativas particulares, que visam somente o embellezamento de Porto Alegre”.
Autoria desconhecida.
Notas:
[1] Estado do Rio Grande, 16/06/1930 p. 9. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.
[2] A atual rua Siqueira Campos
[3] A atual praça Rui Barbosa.