No seguinte quadro do volume 2 de Beco do Rosário, reconstituo o momento inicial das demolições de antigos casarios de uma quadra do centro histórico de Porto Alegre para a abertura da avenida Borges de Medeiros. Como mostra o desenho, é interessante notar que este trecho da grande avenida que se originou na antiga rua General Paranhos e hoje corta a península de Norte a Sul (conforme a fotografia de satélite) não era originalmente um beco a ser alargado, mas sim uma quadra consolidada de prédios comerciais e residenciais que faziam frente à Prefeitura e ao Mercado Público.
Ou seja, tratava-se de um trecho importante de construções em uma quadra altamente valorizada que tiveram de ser desapropriadas afim de abrir a grande avenida que resolveu o problema da ligação entre a zona portuária ao norte e a zona sul da cidade, até então separadas pelo espigão da península sobre o qual o centro histórico de Porto Alegre se situa. Assim como esta quadra, outras duas (entre a atual rua José Montaury e a Rua dos Andradas, e entre a Rua dos Andradas e a Rua Andrade Neves) tiveram de ser parcialmente demolidas para a abertura da avenida Borges de Medeiros. O termo mais preciso talvez seja “perfuradas”, uma vez que apenas um trecho específico das construções são demolidos para abrir caminho a uma via nova.
De acordo com Célia Ferraz de Souza (2010, p. 131), esse tipo de intervenção urbana exemplificado pela demolição de quadras como no caso desse primeiro trecho da avenida Borges de Medeiros chama-se percée, ou perfuração, em francês. Como o idioma denota, o termo tem origem na tradição urbanística francesa, especialmente nas intervenções do Barão de Haussmann na Paris de meados do século XIX, abrindo grandes boulevares. A autora traz a definição de Pinon (2002, p. 13, apud Souza, 2010) dessa intervenção que fez parte das obras de remodelação urbana de Porto Alegre:
Uma percée é uma abertura de uma via pública nova, que necessita de recursos para desapropriação, que atravessa um tecido urbano constituído. […]
Por fim, Souza comenta que “A própria avenida Borges de Medeiros, nas primeiras quadras junto à praça 15 de Novembro, teve de cortar a rua dos Andradas, a via mais valorizada da cidade” (p. 132). De fato, tanto a quadra já consolidada em frente à Pefeitura quanto a quadra seguinte, configurando a Rua dos Andradas, tiveram de ser “perfuradas” na intervenção urbana.
Para desenhar essa parte da história, vali-me de diversas fotografias da época que documentam as obras da avenida, cujo desaterro envolveu mesmo o uso de explosivos, dando uma dimensão de sua importância e magnitude. Nelas, é possível ver a configuração original de prédios da quadra, com o famoso Edifício Malakoff à esquerda, junto à Praça XV, e a atual rua Uruguai, antigo beco da Ópera, que faz esquina até hoje com a antiga Prefeitura.
Outra imagem mostra ainda o início das demolições, provavelmente na segunda metade da década de 1920, deixando apenas um pequeno lote entre o Edifício Malakoff e o rasgo da futura avenida. Posteriormente, o Malakoff foi demolido e, junto à avenida Borges de Medeiros, ao seu lado, foi construído o Edifício Guaspari.
Essa reconstituição de paisagem urbana é tarefa sempre presente na produção desta história em quadrinhos, e se torna ainda mais frutífera quando busco na história do urbanismo no Brasil os princípios que embasavam as intervenções urbanas, como as percées que se originaram na remodelação de Paris sob Haussmann. Com eles, fica mais fácil buscar na documentação de acervos fotográficos, jornalísticos e literários os indícios de como era a cidade quando dessas transformações, e pode-se “redesenhá-la” de forma a também informar o público leitor e trazer uma reflexão sobre o seu espaço urbano e suas transformações ao longo do tempo. Afinal, a cidade é algo vivo, em constante transformação conforme as necessidades de seus habitantes e as disputas políticas que nela se desenrolam.
Referências:
SOUZA, Célia Ferraz de. Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre: o plano que orientou a modernização da cidade. Porto Alegre: Armazém Digital, 2010.
PINON, Pierre. Atlas haussmannien. Paris: Parigrame, 2002.
Maravilhoso o seu trabalho, encanta ver tanta cultura em seu texto, fruto de muita erudição e estudo.
Parabéns, pela escolha das fotos e desenhos.
Muito obrigada, Luis! Fico muito feliz com a tua visita e as tuas palavras! 🙂