“Chamava-se ‘Entrudo’, – ‘jogos de Entrudo’ – e alçava a urbes de um golpe.
O povo saía pra rua, aos magotes, com a ‘fantasia’ mais à mão – um lençol, uma colcha, uma casaca velha, uma saia fora de uso, uma cartola furada, – pintava a cara de preto, prolongava o corte da bôca com dois largos riscos vermelhos, e atracava-se a baldes d’água, nas esquinas, nos largos e até dentro das casas que eram invadidas sem o menor constrangimento.
Ninguém tinha o direito de enfadar-se com os banhos nem com os trotes que, às vezes, chegavam a passar da conta.
Homens de compostura, senhoras discretíssimas, mocinhas recatadas, nesses tres dias de Momo eram verdadeiros demonios soltos na folia provinciana.
– Você me conhece?
O interpelado se atarantava, não respondia, procurava desvencilhar-se do grupo atacante, mergulhava no primeiro corredor que visse pela frente.
Inútil. Os foliões perseguiam o fugitivo, aos berros e empuchões, agarravam-lhe as abas esvoaçantes do fraque, entornavam-lhe em cima, sem dó nem piedade, jarras, canecas, caçambas de água suja que iam recolhendo pelo caminho, nas fontes, nas bicas e até nas sargetas…
O infeliz, encharcado, forçava um riso de quem estivesse achando aquilo tudo muito bonito e tocava pra casa, pingando como um pinto.
Na quarta-feira de cinzas, passados os festejos populares, a cidade amanhecia com um ar amarelo, refriada a espirradora – só dava dôr-de-cabeça, moleza no corpo, nariz gotejante.
Isso tudo era o povo que fazia, à sua conta e risco.
[…]
Carnaval era balde de água. E do balde de água evoluiu para o ‘limão’.
Canecões e caçambas cederam lugar à volumosa bola de cera que era jogada em cheio no peito, nas costas, na cara do transeunte incauto.
Dias antes, as fôrmas eram dispostas, a cera preparada e as infusões de cravo cevadas e sacudidas dentro de vastos garrafões bojudos.
A folhinha marcava a entrada do Rei Momo nos limites da vila. A população se despejava na rua com balaios e sacolas de limões e dava início aos folguedos que mais pareciam combates pela sua rudeza.
Quereis uma prova dessa rudeza?
Nas ruas mais movimentadas, os moradores retiravam tôdas as vidraças dos prédios!
Arre!”
Athos Damasceno Ferreira.
Referências:
FERREIRA, Athos Damasceno. Imagens sentimentais da cidade. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1940. pp. 178-185