A crônica “Decepção”, escrita para o jornal O Radical pelo escritor gaúcho Theodemiro Tostes (1903-1986), traz um panorama da capital federal do Brasil destacando um aspecto que às vezes escapa à lembrança: a sua internacionalização cultural. Como descreve o texto, o viajante de além-mar decepciona-se ao aportar no Rio de Janeiro e descobrir ali tão pouco de novo – músicas francesas e italianas, cinemas, automóveis, blues. Mas tal era a modernidade na capital brasileira da época: cosmopolita e em estreita ligação cultural com a França e grande parte da Europa. Guardando as proporções, claro, Porto Alegre também não fugia a essa regra.
Mas o que seria a brasilidade que o viajante da crônica desejava ver? Um país exotizado pelo olhar eurocêntrico, “demi-sauvage”? As cidades coloniais de Minas Gerais? As fazendas de café de São Paulo? As cerâmicas de Marajó ou as charqueadas gaúchas? Até hoje há controvérsias, mas na década de 1930 essa já era uma questão que mobilizava a intelectualidade do país.
“Decepção
Mister W.C. desceu a sacadinha do navio e entregou-se corajosamente ao primeiro táxi aparecido.
Por enquanto, nada de novo neste páis que, de longe, beliscara a sua curiosidade viageira. A baía verde e as suas montanhas já lhe eram familiaríssimas, através de cartões postais e outras maneiras baratas de viajar sem enjôos, sem passaportes e bagagens. O Pão de Açúcar, lugar comum da linda paisagem carioca… O Corcovado e todos os brindes que Deus espalhou pelo cenário…
Nada de novo, por enquanto. Pela abertura do táxi, a Avenida Rio Branco se mexia no vaivém longo do tráfego. Autos, ônibus, motocicletas, todas as máquinas que bolem com os nervos cansados das cidades. E colaboram eficazmente no movimento da Assistência, dos hospitais e cemitérios.
Pelas calçadas homens vestidos ao gosto de Poole e outros autores, e senhoras quase despidas pelos figurinos parisienses. Fachadas de casas iguais a todas as fachadas deste mundo. Estátuas fundidas em Roma dentro dos jardins de estilo inglês.
Onde estava, afinal, a nota exótica deste país tão decantado pela imaginação dos viajantes? A nota característica, o ‘quelque chose de nouveau’ que obriga o turista a eternizar-se numa travessia do Oceano, na ânsia de bisbilhotar segredos do mapa-múndi?…
Concertos? Música francesa, canções francesas. Ou, o que é pior, vozes italianas expectorando coisas italianas. Cinemas em língua inglesa, francesa, alemã e portuguesa. Vitrolas gemendo blues. Aparelhos de rádio milongando.
E o Brasil. Aquele Brasil ‘demi-sauvage’ mas personalíssimo, que a Sra. Delarne Mardrus povoou de cobras e de lagartos? …O homem tomou o primeiro vapor e voltou à Europa. Convencido de que é melhor viajar a bordo de um livro, por exemplo, do que em qualquer outro transatlântico, por mais confortável que seja.”
O Radical, Rio de Janeiro, 20/09/1933.
Referências:
TOSTES, Theodemiro. Bazar e outras crônicas. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva: IEL, 1994.