Das picaretas à dinamite - abrindo a Borges de Medeiros 01

Das picaretas à dinamite: abrindo a Borges de Medeiros

Hoje, muitas destas histórias estão esquecidas, mas a pesquisa revela que a abertura da avenida Borges de Medeiros, iniciada ainda na administração municipal de José Montaury, em 1922, foi uma longa obra pontuada por muitos avanços, mas também retrocessos, incidentes, e problemas, muitos problemas! Afinal, se com a tecnologia de hoje abrir um rasgo no relevo do centro histórico da cidade já seria um transtorno, imagine-se há mais de cem anos atrás.

Exemplo disso é o relato de José De Francesco (1895-1967), artista e funcionário de várias salas de cinema da Porto Alegre da década de 1920. Passados os episódios sangrentos da Revolução de 1923, De Francesco fala do transtorno que as escavações para abrir a nova avenida, bem como as trincheiras remanescentes do conflito, lhe causavam:

[…] trabalhava até altas horas da noite, voltava do trabalho cansado […]. Já haviam começado as escavações da abertura que seria a futura Avenida Borges de Medeiros, e eu era forçado a fazer longa volta até chegar em casa, no trajeto esbarrava com trincheiras e metralhadoras, e muitas vezes brigadianos com baionetas proibiam de caminhar pelo beco e mesmo pela General Auto, outras vezes nem na quadra do museu, era um suplício.’[1]

"A obra de Otávio Rocha - Os primeiros golpes de pás e picaretas no início da abertura da Avenida Borges de Medeiros". Porto Alegre: Biografia duma cidade, 1941.
“A obra de Otávio Rocha – Os primeiros golpes de pás e picaretas no início da abertura da Avenida Borges de Medeiros”. Porto Alegre: Biografia duma cidade, 1941.

Se para o jovem artista aquele trajeto acidentado era um suplício, o jornal Novidades, em 1923, regozijava-se de ver desaparecer a antiga rua General Paranhos, de péssima reputação:

Desde dias que a picareta intendencial, numa faina salutar, […] lá pelo Becco do Poço a demolir pardieiros infestos e casebres antiquissimos. É um gosto, ao mortal que por ali faz o ‘se caminho’, na agitação quotidiana da vida, ver a rapidez com que aquillo tudo tem vindo abaixo, e patenteada nas curtas horas que medeiam entre a manhã e o entardecer.

Quasi todo o flanco impar que perfaz a quadra entre as ruas Andrade Neves e Riachuelo está reduzido já a um montão de escombros, que são retirados com actividade methodica. De sorte que o transito não se tem visto interrompido, esbarrado importunamente numa pilha de seixos aqui, um lamaçal acolá, — inconvenientes tão communs em obras dessa natureza, sobretudo quando ellas têm a coroal-as as noites e os dias chuvosos que têm feito.[2]

Na Avenida Borges de Medeiros - Vista das obras sob a direcção da firma Dyckerhoff & Widmann S. A." Revista do Município, RS, 1930, Ed00024, p. 23. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.
“Na Avenida Borges de Medeiros – Vista das obras sob a direcção da firma Dyckerhoff & Widmann S. A.” Revista do Município, RS, 1930, Ed00024, p. 23. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.
As demolições na rua General Paranhos, antigo Beco do Poço. Revista A Máscara, 06/02/1925. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
“Travessa General Paranhos, antigo becco do Poço. Um aspecto dos trabalhos de demolição e alargamento que transformarão a antiga viella na grande avenida Gal. Paranhos”. Revista A Máscara, 06/02/1925. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

De fato, a expectativa era que a Borges de Medeiros fosse a famosa e elegante rua do Ouvidor porto-alegrense, mas a obra andava devagar. Afinal, quase todo o trabalho de demolição de prédios desapropriados e escavação do maciço granítico era feito com pás e picaretas.

"Outro aspecto da avenida Borges de Medeiros". Revista do Município, RS, 1930, Ed00024, p. 23. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.
“Outro aspecto da avenida Borges de Medeiros”. Revista do Município, RS, 1930, Ed00024, p. 23. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.

Com a resolução do conflito de 1923 e Otávio Rocha sucedendo José Montaury na prefeitura durante o processo de acomodação das forças políticas, vê-se a necessidade de ampliar o escopo da obra, tornando a avenida mais larga e rebaixando ainda mais as suas declividades. A demolição das edificações continuava o seu curso, contudo, são poucas as menções às pessoas que tinham de deixar as suas casas, como essa de 1924:

O dr. Octavio Rocha, intendente municipal, concedeu um prazo até 15 de novembro proximo a todos os moradores dos predios da rua General Paranhos para mudança dos proprios do municipio [sic] que habitam.

No dia 16 de novembro será iniciada a demolição, para abertura definitiva da rua.[3]

De fato, o que se pode levantar até aqui é um grande silêncio da imprensa a respeito dos moradores da rua em processo de demolição, e que tiveram que deixar suas moradias e arranjar outras, mais caras e menos cômodas, se quisessem continuar habitando o centro da cidade. Entre velhas casas de cômodos superlotadas em outros becos e até mesmo porões sem ventilação, as opções não eram animadoras, tanto que é provável que boa parte dessas pessoas tenha tido de ir morar nos arrabaldes, de Porto Alegre, onde a infraestrutura e o transporte público mal alcançavam, e onde as opções de trabalho eram bem menores que no centro.  

Em 1926, quatro anos após iniciada a demolição dos imóveis da rua General Paranhos, o jornal A Federação anuncia o início do desaterro:

Foi, hontem, iniciado o serviço de desaterro pela rua Fernando Machado, devendo dentro em poucos dias ser atacado o desaterro pelo lado da rua Jeronymo Coelho.

Para apressar esses trabalhos foram tomadas diversas providencias referente [sic] ás canalisações de águas e exgottos afim de não ser prejudicado o seu funccionamento durante o serviço de excavação. [4]

"Outra vista das excavações feitas para a avenida Borges de Medeiros". Revista A Máscara, Ed. 001, 1927, p. 99.
“Outra vista das excavações feitas para a avenida Borges de Medeiros”. Revista A Máscara, Ed. 001, 1927, p. 99.

Se, por um lado, a ambição da intervenção urbana aumentava, por outro, esse era um trabalho que consumia uma quantidade inaudita de recursos. Assim, em 1927, o Correio do Povo noticiava que as obras estavam paradas.

Ora, um trabalho desse vulto só poderia ser feito por uma empresa especializada, não mais por punhados de operários da prefeitura. Entra em cena a alemã Dyckerhoff & Wiedemann, especialista em grandes obras urbanas de concreto armado. No final de 1929, o jornal Estado do Rio Grande anuncia a chegada de uma grande máquina escavadora, bem como do diretor geral e de um engenheiro daquela empresa à cidade:

Ontem, chegaram de Buenos Aires os drs. Guilherme Lohrmann e Léo Weppler, director geral e engenheiro, respectivamente, daquella grande empreza constructora.

O dr. Weppler, como especialista em construcções de viadutos, dirigirá os trabalhos não só do viaduto propriamente, mas tambem os dos muros de arrimo.

Encontra-se já nesta capital, a machina para os varios serviços.

A machina escavadora, que tem a capacidade de 45 toneladas, começará a funccionar sómente dentro de duas semanas, por faltaram algumas peças.[5]

A Dyckerhoff & Wiedemann também se encarregou das detonações do maciço granítico, o que permitiu acelerar o desaterro. Esta rocha duríssima, que forma o espigão em que o centro histórico de Porto Alegre está assentado, só assim poderia ser removida para dar lugar à nova grande avenida.

É claro que a cidade não passou incólume por essas explosões. Ainda que a população fosse avisada de sua iminência através de sirenes e da ação policial, que afastava os transeuntes do entorno das detonações, houve feridos, estragos em imóveis e até uma vítima fatal! Esta última será objeto de um próximo post, mas basta dizer que foi, à época, uma tragédia noticiada na imprensa, e que trouxe muitos problemas à empresa Dyckerhoff & Wiedemann.

Por outro lado, a imprensa também comemorava os avanços das técnicas de construção empregadas pela empresa alemã, especialmente na figura dos moderníssimos guindastes que já subiam pedras com cimento para elevação dos grandes muros de contenção erguidos de cada lado da escavação.

Início das obras de levantamento dos muros de contenção na avenida Borges de Medeiros, provavelmente início da década de 1930. Foto 4886f, Fototeca Sioma Breitman do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo.
Início das obras de levantamento dos muros de contenção na avenida Borges de Medeiros, provavelmente início da década de 1930. Foto 4886f, Fototeca Sioma Breitman do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo.
"Uma grande empreza constructora..." Correio do Povo, 01/10/1930, p. 14. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho. Detalhe.
Outra vista do canteiro de obras com galpões, muro de contenção sendo levantado e, ao fundo, um guindaste em operação. “Uma grande empreza constructora…” Correio do Povo, 01/10/1930, p. 14. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho. Detalhe.

Porém, a movimentação de terra era grande, e os riscos de desestabilização das construções do entorno, especialmente na rua Duque de Caxias, consideráveis. Assim foi com o prédio de número 1294 daquela rua, que passou a apresentar uma grande rachadura em suas paredes:

Em consequencia das excavações para o viaducto, o predio á rua Duque de Caxias, n° 1298 ameaça ruir.

O proprietário requer ao Juiz Districtal uma vistoria para ser indenizado, opportunamente, dos prejuizos.

[…]

Ao fazer, porém, os trabalhos da escavação, não sabemos si por não haverem tomado as precauções cabiveis no caso, o prédio à rua Duque de Caxia n. 1294, começou a deslocar-se do nivel, apresentando largas fendas nas paredes internas e externas. [6]

Há que se imaginar esse e outros tantos inconvenientes para a cidade na forma de vias interrompidas, dificuldade de acessar e atravessar ruas que ficavam em desnível em relação à avenida escavada, interrupção de linhas de bonde e, claro, muita lama e depósitos de pedregulhos pelas ruas durante um bom tempo. Afinal, não só a obra em si como o processo de negociação das desapropriações de imóveis que estavam no trajeto da nascente Borges de Medeiros foi lento. Tanto foi assim que, ainda na década de 1930, a administração municipal ainda negociava a desapropriação de imóveis na rua dos Andradas, quando só então foi possível continuar a abertura da avenida em direção da praça Montevideo, como era previsto. Durante os primeiros anos dessa década, a avenida Borges de Medeiros parava abruptamente na altura da rua Andrade Neves, revoltando a população que esperava uma grande ligação entre o porto e os bairros da zona sul.

Fotografia aérea da abertura da Borges de Medeiros. Diário de Notícias, 02/06/1933, p. 1. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
Fotografia aérea da abertura da Borges de Medeiros. Diário de Notícias, 02/06/1933, p. 1. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

Felizmente, uma vultuosa soma vinda do Banco Pfeiffer permitiu a continuidade da avenida, mas não sem muitas lágrimas e ranger de dentes…

 

Referências:

[1] FRANCESCO, José De. Reminiscências de um artista. Porto Alegre: s/ editora, 1961, p. 74. Apud GASTAL, Susana. Salas de Cinema: cenários porto-alegrenses. Porto Alegre, EU/Porto Alegre, 1999, p. 42.

[2] Novidades, Ed0006, 1923, Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

[3] Rua General Paranhos. A Federação, Ed00251-1, 28/10/1924, p. 5. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

[4] Avenida Borges de Medeiros. A Federação, Ed00019-1, 21/01/1926, p. 5. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

[5] O embellezamento da cidade. Estado do Rio Grande, Ed0020-1, 12/11/1929, p. 7. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

[6] Um prédio em perigo. Estado do Rio Grande, Ed00133-1, 29/03/1930, p. 6. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.

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