Nesta edição de 26/9/1929, o jornal Correio do Povo traz um relato extraordinário de violência urbana e de gênero na então pacata Porto Alegre, que recém ganhava ares de cidade moderna.
Além das fotografias muito impactantes dos corpos dos assassinados, o que não era incomum na imprensa à época, a reportagem traz um plot twist no que seria mais um exemplo de comportamento masculino que considera a mulher como propriedade, e que desrespeita suas decisões buscando recuperá-la para si através da força. Também é digno de nota o tom culpabilizador do jornalista, colocando a mulher como a provocadora de toda a violência do episódio.
A ação se dá em dois “palcos” principais da cidade, conhecidos por serem mal frequentados à época: a rua Espírito Santo, mais conhecida como Beco do Império e notório ponto de meretrício no início do século XX, e a rua João Alfredo, na Cidade Baixa. Assim como os personagens, esses espaços também são importantes na narrativa do crime, reforçando sua má-fama.
“Dupla cena de sangue deu-se á rua João Alfredo[1]
Dois homens, armados de revolvers, quando penetravam numa casa em procura de uma mulher, foram assassinados, por um outro individuo, com a propria arma arrebatada a um dos invasores
Os antecedentes da tragedia e a prisão em flagrante do criminoso
Segundo apurou a policia, tanto as victimas como o criminoso, eram conhecidos proxenetas
Mais uma pagina de sangue temos, hoje, a narrar com todas as minucias.
O sêr que Deus confiou ao mundo como o symbolo da pureza e da bondade, desce, dia a dia, numa carreira mesmo vertiginosa, para as profundezas de um grande abysmo, qual o do crime sob os seus variadissimos aspectos. É sempre a mulher o ‘pivot’ da maioria das tragedias; ella transformou-se, hoje, de uma preciosa joia que era, para um objecto de grande cautela e, digamos sem mais preambulos – de verdadeiro terror.
Velhos amantes
Em Cordoba, na Republica Argentina, viviam maritalmente, ha onze annos, Andres Christobal Paez e Theresa Sanches, conhecida vulgarmente, pelo nome de ‘Martha’; lá residiam na Calle Rioja, n. 222, onde, segundo declara ‘Martha’, era o palco escolhido por Paez para inflingir-lhe maus tratos, espancando-a, e mesmo ferindo-a gravemente varias vezes. Temendo a sua vida, ou melhor, tendo o seu amante um genio irascivel, nunca ouzou abandonal-o; onze annos o supportou como o seu verdadeiro algoz.
Tentando a vida no Brasil
O Brasil, terra da promissão, terra onde tudo se apresenta facil para a conquista do ouro, foi, ha tres mezes, preferido por Andres Paez para a solução de sua precaria situação; para aqui se transportou, mandando buscar, ha um mez, sua amante Thereza Sanches, que hoje se tornou o ‘pivot’ da scena de sangue. Passaram, ambos, a residir no prostibulo da rua Espirito Santo, n. 212.
Os antecedentes da tragedia
Na rua João Alfredo, n. 181, residem Vicente Torres, sua mulher Nelly Peralta e um filhinho menor.
Ha cerca de vinte dias, Vicente, que diz ser propagandista, conheceu, quando trabalhava na rua Rogerio Machado, que lhe disse exercer, tambem, a mesma profissão. Tornaram-se amigos. Rogerio então, pediu a Vicente que consentisse com elle morar, no que foi promptamente attendido, e pediu tambem a sua acquiescencia para ter em sua companhia, uma mulher, durante pouco tempo, pois que, ella, em breve, se retiraria; ainda neste desejo, nada proprio para [….] foi Rogerio attendido.
A mulher
Ante-hontem, Rogerio levou em sua companhia, para a casa de Vicente Torres, Thereza Sanches, que, abandonando o seu velho amante Andres Paez, foi, com o primeiro residir, na esperança de passar melhores dias e, assim, pôr termo aos seus padecimentos.
O ciumes
O cego ciume que domina os individuos fracos, envolveu o espirito de Paez, que deliberou arrancar a sua antiga companheira dos braços de seu novo amante, custasse o que custasse.
Um entendimento
Hontem, pela manhã, Paez procurou falar a Thereza, porém, não logrou o seu intento, visto que foi recebido por Rogerio, que lhe disse peremptoriamente que a sua ex-amante não voltaria mais para a sua companhia. Pareceu ter-se conformado, porém, mais tarde,
O crime
Com o firme proposito de reconquistar sua amante, Paez deixou, ás 14:30 de hontem, o prostibulo da rua Espirito Santo, acompanhado do seu companheiro Rodolpho Barembuam.
Armados, dirigiram-se ambos, no automovel n. 5201, para a rua João Alfredo, n. 181, nova residencia de Thereza. Fizeram o vehiculo estacionar um pouco distante da casa. Chegando, bateram á porta.
– Quem é? – perguntaram de dentro.
– Sou eu – Responderam.
– Eu quem? – retrucaram do interior da casa, – e a porta foi aberto [sic]. Dois homens de revólver em punho, entraram, e Vicente Torres, que lhes abrira a porta, ao vel-os assim armados, procurou fugir, aterrorisado.
Rogerio, que se achava almoçando em companhia de sua amasia, Nelly Peralta e Jolly Peralta, divisando que aquelles homens tinham em mira a sua eliminação, escondeu-se num quarto contiguo á sala de jantar.
Rodolpho, mais arrojado, apezar de doente, proseguiu, casa a dentro, e, ao se approximar do quarto onde se escondera Rogerio, foi, por este, dominado e desarmado. Paez, escondera-se, ao entrar, num quarto contiguo á sala de visitas.
Já senhor da pessoa de Rodolpho, Rogerio fez detonar a arma que lhe arrebatára das mãos; sentindo-se alvejada, a victima procurou deixar o palco da tragedia, em direcção á porta da rua, quando, impotente, deixou-se cair pesadamente ao solo, para expirar momentos depois.
Praticado o primeiro crime, Rogerio num gesto de incontido odio, procurou Paez, que se achava escondido no quarto proximo á sala e, ao avistal-o, alvejou-o tambem, fugindo em seguida. A victima, apezar de perder sangue aos borbotões, ainda saiu em perseguição ao crimonoso, porém, no pateo, proximou ao quarto de banho, sentiu faltar-lhe as forças e, dessa forma, caiu, poucos momentos mais, tendo [sic] de vida.
A prisão do crimonoso
Manoel Ferraz da Costa, o ‘chauffeur’ que conduziu Rodolpho e Paez, ouvindo, da rua, os estampidos, dirigiu-se ao local, encontrando a correr, com o revólver em punho, Rogerio Machado. Dando-lhe voz de prisão, foi o criminoso desarmado e conduzido á Chefatura de Policia, de onde foi, depois, remettido á 2ª delegacia.
A acção da policia
O dr. Sensurio Cordeiro, delegado do 2º districto, ao ter conhecimento do facto, fez recolher o criminoso ao xadrez, e dirigiu-se com o seu amanuense, para o local do crime, providenciando para a remoção dos cadaveres para o necroterio. Em seguida, aquella autoridade dirigiu-se para a delegacia, afim de ouvir o criminoso e as testemunhas.
As testemunhas
Foram arrolados, como testemunhas, Vicente Torres, sua mulher Nelly Peralta, sua cunhada Joly Peralta e Thereza Sanches.
Segundo a nossa reportagem conseguiu apurar, consta que Vicente Torres foi, ha dias, preso como suspeito de caftismo[2]. Elle, em suas declarações, allega ser casado e no entanto, sua mulher diz ser solteira; Joly Peralta que faz em sua companhia? É possivel, a um casal honesto, permittir que em sua companhia resida mulher de maus precedentes, como o é de Thereza Sanches?
Resta, pois, que a policia ellucide bem quem é Vicente Torres, visto que, sobre elle, recaem suspeitas de caftismo.
As victimas
Andres Christobal Paez, que contava 27 annos de idade, era de nacionalidade argentina, e residia, conforme dissemos, á rua Espirito Santo, n. 212. Rodolpho Barembuan é ukranianao, branco, e contava 24 annos de idade; nos seus bolsos foram encontradas duas cartas de conducta, fornecidas pela policia de Caxias e Santa Maria.
Segundo corre, ambas as victimas eram proxenetas e disfarçavam-se em vendedores ambulantes.
Os depoimentos
Hontem, foram tomados os depoimentos de Vicente Torres, sua mulher, sua cunhada e de Thereza Sanches; as declarações destas testemunhas são unanimes em affirmar que as victimas entraram armadas, e momentos depois, aterrorisadas, deitaram a correr pelo quintal da casa, ouvindo, apenas, os estampidos, ignorando, assim, o autor dos mesmos.
Amanhã deverá depor o ‘chauffeur’ Manoel Ferraz da Costa, e outras que a policia arrolou.
O exame do local
Cerca das 17 horas, o dr. Sensurio, acompanhado do […]”*
Autoria desconhecida
*A reportagem pára aqui pois devido à pandemia não foi ainda possível voltar ao Arquivo Municipal para fotografar o último trecho.
Referências:
[1] Correio do Povo, 26/09/1929, p. 5. Hemeroteca do AHMMV. A grafia original foi mantida.
[2] Ou seja, atuar como cafetão.