Desde meados dos anos 1920 aos anos 1940, Porto Alegre deveria parecer um grande canteiro de obras. Aberturas de avenidas, demolições de casarios antigos, colocação de tubulações de esgoto e postes de iluminação, enfim, a paisagem urbana se alterava rapida e, em alguns pontos, dramaticamente. Contudo, no início da década de 1930, a obra mais impressionante até então estava em pleno vapor, mudando radicalmente a ‘cara’ do centro histórico e simbolizando o grande marco da modernização urbana: a abertura da avenida Borges de Medeiros.
O Correio do Povo traz uma reportagem sobre a empresa alemã Dyckerhoff & Widmann, que ganhou a concorrência pública para executar essa gigantesca obra. Para além dos méritos da empresa em si, o texto traz um retrato vívido do canteiro de obras da abertura da avenida, descrevendo algumas de suas instalações, máquinas e os grandes muros de contenção feitos para estruturar as arcadas da avenida, além dos contratempos encontrados na obra até então:
“Uma grande empreza constructora em actividade no continente sul-americano[1]
A poderosa firma Dyckerhoff & Widmann S. A. iniciou os seus trabalhos na America do sul em 1911, com a construcção de um grande dique e muros de atracação do ‘Puerto Belgrano’, na Republica Argentina
Actualmente, na construcção da projectada Avenida Borges de Medeiros, a firma Dyckerhoff & Widmann S. A. está prestando o seu eficiente concurso a grandiosa obra de remodelação da metropole gaúcha
As observações colhidas numa rápida visita ás referidas obras – Já foram desaterrados 65.000 metros cubicos de terra e rocha – Vae adiantada a construcção dos muros do viaducto – As variantes já estudadas para esta grandiosa obra
Entre as grandes emprezas constructoras em actividade no continente sul-americano, avulta, em um plano de marcante relevo, pelo seu apparelhamento technico e magnifico corpo de collaboradores, a Dyckerhoff e Wiedmann S. A. Dywidag. Seu campo de actividade desdobra-se em duas ramificações fundamentaes: Obras de architectura e Obras de engenharia e especialidades.
A primeira dellas abrange a construcção de obras publicas, bancos, cinemas, estações de ferro-carris, casas de renda, commerciaes, para escriptorios, fabricas, etc., bem como edificios particulares, casas baratas e obra completa.
A segunda inclue: fundações para quaesquer especies de edificios, machinarias, etc., sobre pilastras de cimento armado, e á perfuração, adaptando-se para esta o sistema patenteado ‘Strauss’, esqueletos completos para edificios, cupulas e abobodas pelo sistema Zeiss-Dywidag, tanques de cimento armado e etc., etc.
A Empreza Constructora Dyckerhoff e Widmann S. A. iniciou a sua actividade na America do Sul em 1911 com a construcção do grande dique e muros de atracação do ‘Puerto Belgrano’, por conta do Ministerio da Marinha da Republica Argentina.
Quase ao terminar essa notavel obra de engenharia a empreza ampliou sua acção rapidamente de maneira que, na actualidade, possue a par das muitas obras que executou no vasto campo da sua actividade, um rico haver em obras de architectura. Especialmente na cidade de Buenos Aires levou ella a cabo uma larga serie de obras, destacando-se na execução de importantes esqueletos de cimento armado e de architectura. Estas ultimas, na maioria dos casos, entregou-as a pleno contento dos respectivos proprietarios e promptas para ser habitadas.
Digna de nota é, também, a parte que se refere á construcção para empreza de portas e […]. Já pela mencionada […] nas melhores condições para resolver qualquer dos problemas que diariamente se renovam nos extensos caminhos da engenharia.
Mas, não se limitam as actividades da firma á execução das obras de indole acima descripta senão que se acham ampliadas em grande escala na construcção de pavimento para vias publicas, já tendo, neste particular, innumeras obras em asphalto, cimento armento[2], macadam[3] e concreto.
A Dyckerhoff e Widmann S. A. dispõe de um notavel apparelhamento de machinaria e installações de toda classe e na execução de suas obras emprega os auxiliares mais efficazes e modernos, com o que sempre assegura um trabalho rapido e economico.
Como base dessa assertiva deve-se encarar dois factores essenciaes: a longa existência da firma e o seu apparelhamento technico de que falamos no periodo anterior.
O histórico da Dywidag na Europa póde assim resumir-se:
Em 1865 foi ella fundada no sistema de sociedade em commandita, transformando-se em 1907 em sociedade anonyma, cujo capital attinge actualmente a oito milhões de marcos-ouro. Em 1911 sua séde social foi transferida para Wiesbaden-Bilbrich onde ainda se encontra. Devido ao seu continuo desenvolvimento foram estabelecidas diversas succursaes em Berlim, D[r]esde, Dusseldorf, Hamburgo, Karlsruhe, Munich, Nuremberg, Stuttgart e em numerosas praças importantes da Allemanha. No estrangeiro a Dywidag conta com succursaes sociedades alliadas ou representações permanentes em Barcelona, Buenos Aires, Montevideo, Bucarest, Dantzig, Haya, Constantinopla, Paris, Santiago do Chile, Vienna, Zurich e, agora, Porto Alegre, além de muitas outras cujo numero seria demasiadamente longo para ennumerar.
Da actividade da empreza no continente americano bastam para dar uma idéa justa as seguintes:
Engenharia. O grande dique do Puerto Belgrano, na Argentina. O novo porto de Salto, a ponte de cimento armado sobre o rio Arapey, no Uruguay, a ponte levadiça ‘Pueyrredón’ sobre o Riachuelo em Buenos Aires, a grande cisterna com 6.000 metros cubicos em La Plata, por conta da Direcção de Obras Sanitarias da Republica Argentina; os pharoes de cimento armado em Tres Arroyos, Isla Verde e Querandí, sobre o Atlantico e encommendadas pelo Ministerio da Marinha de Buenos Aires. Conta-se ainda a pavimentação de varias ruas de Montevidéo e as rodovias de cimento armado construidas nos arredores da capital uruguaya.
Architectura. Entre as grandes obras architectonicas levadas a cabo no continente pela Dywidag é de justiça salientar: Usina e casa de bombas do grande dique de Puerto Belgrano; cortume da firma Breuer, Vilarino e Cia.; estação radio-telegraphica da ‘Sociedad Transradio Internacional; Estação radio-telegraphica da armada argentina; palacio Roccatagliata; capella dos padres benedictinos, pavilhão da maternidade de la ‘Sociedad de Beneficiencia de la Capital’, salão de festas e aula de gimnastica da ‘Escuela Alemana de Belgrano’, casas de renda da sra. Maria R. G. de Figueroa, casa commercial e escriptorio de D. Emilio Valsecchi, todas ellas em Buenos Aires, onde ainda póde citar-se o magnifico Cine Florida, a casa de renda e os escriptorios da Companhia de Seguros ‘La Atlantica’, o ‘Hospicio San Vicente de Paula’. Em Montevidéo avultam, entre outras magnificas construcções da Dywidag, o imponente pelacio ‘Salvo’ e os vastos galpões de cimento armado no porto da capital executados por conta da firma ‘Segade’.
Ao claro descortino da direcção da Dywidag não poderia escapar o interesse da creação de uma succursal na capital rio-grandense.
Animada de um largo espirito de progresso, multiplicando dia por dia as suas construcções e reformando febrilmente as suas vias publicas, Porto Alegre offerece um campo ilimitado ás grandes sociedades que se especializaram na engenharia e na architectura.
Assim, com seu formidável apparelhamento tecnico e de pessoal, a Dyckerhoff e Widmann não trepidou em trazer o seu efficiente concurso á grandiosa obra de remodelação da metropole gaúcha.
Para isso installou sem mais demoras a sua succurssal aqui, iniciando, logo a seguir, a construcção de bellos edificios, tanto particulares como de renda ou commerciaes, e ampliando rapidamente a sua actividade no seu novo e promissor centro de acção.
Surgiu, pouco depois, a concorrencia publica para a construção do imponente viaducto da futura avenida Borges de Medeiros, uma das mais bellas e grandiosas obras de embellezamento da cidade.
Ingressando na concurrencia a Dywidag viu premiados e acceitos os seus projectos que, pouco depois, começaram a ser realizados, estando hoje bastante adeantados.
Do que é esse trabalho, dizem bem as photographias que illustram essa pagina e em que figuram aspectos do inicio dos serviços e do estado em que ora se encontram, marchando para uma rapida e brilhante conclusão.
O desaterro, que dentro de dois mezes no maximo, estará concluido, já attingiu a nada menos de 65.000 metros cubicos de terra e rocha.
Os muros do viaducto da rua Duque de Caxias estão quasi promptos do lado sul. Iniciam-se elles ali com um metro de largura e um de altura vindo terminar já na rua Jeronymo Coelho, com 2 metros de largura por doze e meio de altura.
O mesmo trabalho foi iniciado do lado norte, mas ali um imprevisto dificultou-o bastante. É que foi encontrada rocha muito profunda o que obrigou o levantamento de 35 metros de muro com estacas de immersão.
Mas não foi só essa a difficuldade que pôz á prova a capacidade technica dos engenheiros locaes da Dywidag: O predio da rua Duque de Caxias, que fica sobre o corte exacto do viaducto obrigou, a bem da sua propria estabilidade, a penosa construção de muros dentro da propria rocha, por baixo dos seus alicercer, o que representa um trabalho dificil, mas, ao mesmo tempo, de absoluta efficiencia.
O trabalho de desaterro tambem começou com a sua parcella de obstaculos pois feito até bem pouco com uma draga, só pôde ser executado, agora, manualmente, o que vem sendo vencido brilhantemente pelos respectivos encarregados.
No apparelhamento para o levantamento dos muros lateraes avultam dois grandes guindastes com misturadora de argamassa e que levanta, simultaneamente, a pedra e a propria argamassa o que representa um inapreciavel aproveitamento de tempo e de trabalho manual.
Existem, ainda, uma grande machina trituradora de pedras e varias perfuradoras, sendo aquella movida por um dynamo de grande potencia installado convenientemente com seus accessorios em um chalet[4] especial, conjuncto esse que dá a impressão de uma usina completamente equipada para attender a innumeros reclamos technicos
Uma officina mechanica, com todos os pertences e varios operarios, acompanha o serviço geral, praticando-se ali, toda a sorte de composturas, limagens, torneamentos, etc. que se faça mister executar de momento.
Dois ‘trollys’, sobre trilhos de ferro que cortam a vasta área de serviço conduzem, de instante a instante, os materiaes, necessarios ao levantamento dos muros, taes como a pedra triturada, ferramentas, […], etc., etc.
Na execução propriamente dita do viaducto foram estudadas tres variantes: uma com arco com tres articulações, outra com viga simplesmente apoiada e dois consolos nos extremos da vida e uma […] que comprehende um […] continuo.
Todas essas variantes foram endereçadas á Intendencia Municipal para os necessarios estudos.
Escolhido o typo do projecto serão immediatamente iniciados os trabalhos da […]va ponte calculando-se que em janeiro vindouro estarão […] ultimados.
Com a construcção desse viaducto Porto Alegre terá um dos seus mais bellos trabalhos de arte, constituindo ella uma das mais brilhantes provas da capacidade da grande empreza que levou a cabo. E a Dywidag não tem poupado seus melhores esforços nessa notavel obra: quem passe a qualquer hora pela rua Jeronymo Coelho ou pela rua do Arvoresdo poderá constatar o […] e a actividade desse […] trabalho.
Centenas de operarios sem descanso movimentam-se em differentes ramificações do serviço: uns attendem a perfuração da rocha, outros a […]cção de materiaes, outros […]da ao desaterro e, dominando tudo, o ruido sonoro das machinas poderosas no seu […] cantico de força e de trabalho.
O viaducto da Avenida Borges de Medeiros, impelidos pela capacidade admirável da Dywidag, marcha a largos passos para a sua conclusão.
Com elle, a linda capital gaucha assignalará admirável marco na historia […]giosa da sua […]. Mas, de outra parte, tambem o poder […] grandes organisações […]vidade bem orienta a Dyckerhoff e Widmann, […].”
Autoria desconhecida.
Referências:
[1] Correio do Povo, 01/10/1930, p. 14. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho. A grafia original foi mantida.
[2] Provavelmente, um erro tipográfico. O correto é armado.
[3] Tipo de pavimentação desenvolvida no século XIX pelo John L. MacAdam, e que consistia em camadas sobrepostas de diferentes tipos de cascalho, posteriormente assentadas com rolos compressores.
[4] Provavelmente, um dos barracões de madeira que se pode observar nas fotografias.