Carrossel - E o viaduto não ficou assim 01

…E o viaduto não ficou assim

Esta matéria do jornal A Federação traz, além de informações sobre algumas das várias alterações que o projeto da avenida Borges de Medeiros sofreu ao longo de sua execução, alguns desenhos do projeto de Christiano de La Paix Gelbert (1899-1984) para o viaduto da rua Duque de Caxias.

Como não era raro nos jornais da época, imagens e textos não necessariamente se relacionavam, resultando os desenhos do projetos reproduzidos na matéria serem apenas ilustrativos. O texto não os comenta, tratando apenas das correções de perfil e trajeto da nova avenida que se abria, e dos imóveis que estavam sendo desapropriados para a sua abertura. Contudo, refere-se ao interessante mapa da cidade em que se sinaliza a extensão da avenida Borges de Medeiros e o seu percurso de norte a sul, através do maciço granítico.

"Ligação da avenida Borges de Medeiros com a avenida Beira Rio". A Federação, 24/03/1927, p. 2. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.
“Ligação da avenida Borges de Medeiros com a avenida Beira Rio”. A Federação, 24/03/1927, p. 2. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

Corria o ano de 1927, e a prefeitura havia lançado o concurso de projetos para o viaduto, recebendo inicialmente dois: um do engenheiro Duilio Bernardi (1888—) e outro do chefe do Departamento de Desenho da Secretaria de Obras Novas, Christiano de La Paix Gelbert (1899—1984). Mais adiante, o também engenheiro e professor Manoel Itaqui (1876—1945) apresentaria a sua proposta, que foi a ganhadora do certame. O jornal ilustra a sua matéria com desenhos dos dois primeiros projetos, recusados face à superioridade da solução apresentada por Manoel Itaqui.

Estilisticamente, o projeto de Gelbert tem características historicistas, como se pode ver nas elevações apresentadas no jornal: presença de um pedimento ou base nas fachadas dos muros de arrimo, que são ritmadas por cheios e vazios (nichos de arcos plenos ou abatidos) e ricamente decoradas com rusticações lembrando pedra talhada, aberturas em arco pleno e balaustradas, estátuas e bustos, entre outros elementos da arquitetura clássica romana e barroca. Há uma grande riqueza de texturas e motivos decorativos   inspirados na natureza, como figuras humanas e pedras, o que atesta a permanência de um gosto pela tradição arquitetônica de inspiração clássica, uma das vertentes estilísticas da arquitetura eclética.

Este é um dos primeiros projetos públicos de Gelbert, que posteriormente adotou o estilo art déco em outras obras famosas, como o Hospital de Pronto Socorro e o Centro de Saúde Modelo. Segundo a arquiteta Taísa Festugato,

Do projeto de Gelbert temos apenas uma vista da escadaria que mostra a linguagem eclética que ele utilizará no início de sua carreira (balaustradas, colunas, cornijas, rusticação[1]). Bastante escultórico, o projeto apresenta uma fonte dividida em três nichos, ocupando a parte mais alta e plana separada da escadaria em declive por uma espécie de pórtico com uma escultura humana encabeçada com a palavra Labor. Os três lances da escadaria principal são organizados por duas janelas e uma porta de alturas diferentes, obedecendo ao desnível com formato de arco. A finalização da escadaria se dá com uma espécie de pórtico com dois bancos e um pórtico menor na cabeceira. O uso de balaustrada nos guarda-corpos e rusticação em pedra na base e nas marcações das colunas serão elementos corriqueiros nas primeiras obras de Gelbert. A escadaria de aceso à Rua Duque de Caxias é organizada em quatro lances seguidos de três patamares junto à parte mais alta. [2].

“Estudo para o accesso á rua Duque de Caxias e dos muros de arrimo – lado norte da avenida Borges de Medeiros”. Projeto de Christiano de La Paix Gelbert. A Federação, 24/03/1927, p. 2. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

O projeto de Duilio Bernardi para o mesmo muro de arrimo, por sua vez, apresenta uma maior sobriedade no tratamento de fachada, sem tantas texturas e decorações. O uso de nichos de arco pleno ritmados regularmente o aproxima do efeito de fachada do projeto de Manoel Itaqui, porém em um único plano ao longo do muro. Porém, assim como Gelbert, Bernardi também lança mão de elementos de decoração de fachada típicos da arquitetura historicista: pedimento com efeito rusticado, arcos plenos nos nichos com estátuas, chaves de arco, pilastras rusticadas e balaustradas.

"Projecto do accesso á rua D. de Caxias e dos muros de arrimo - lado norte da avenida Borges de Medeiros". Provável parte do projeto de Duilio Bernardi. A Federação, 24/03/1927, p. 2. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.
“Projecto do accesso á rua D. de Caxias e dos muros de arrimo – lado norte da avenida Borges de Medeiros”. Provável parte do projeto de Duilio Bernardi. A Federação, 24/03/1927, p. 2. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

Outro desenho de fachada para o muro de arrimo do viaduto não traz nenhuma informação sobre sua autoria ou localização, mas suas características fazem crer ser parte do projeto de Duilio Bernardi. Assim como o desenho acima, identificado, este traz a mesma sobriedade no tratamento do muro, marcado pelo ritmo de portas que se convertem em nichos de arcos plenos, base e pilastras rusticadas.

Finalmente, a matéria também traz um desenho do próprio viaduto, sem porém apontar quem é o seu autor:

Desenho de um projeto do viaduto da rua Duque de Caxias. Projetista não identificado. A Federação, 24/03/1927, p. 2. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.
Desenho de um projeto do viaduto da rua Duque de Caxias. Projetista não identificado. A Federação, 24/03/1927, p. 2. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

Trata-se de um grande arco abatido sustentado, junto ao muro de arrimo, por uma grande base rusticada. No lugar da chave de arco, bem ao centro, um brasão rodeado do que parece ser motivos decorativos vegetais, e, acima dele, um pórtico clássico ladeado por volutas, compondo algo muito semelhante a um típico frontão barroco. No nível da rua Duque de Caxias, vê-se uma provável cornija ritmada pelo que parecem ser mãos francesas, cada uma marcando a posição dos pilaretes entre as balaustradas do guarda-corpo. Entre as mãos francesas, parece haver placas com palavras escritas, mas não é possível ter certeza a partir deste desenho.

Também é interessante notar as grandes escadarias de um lado e de outro do viaduto, solução superada pelas rampas escalonadas do projeto de Manoel Itaqui.

Em suma, pode-se dizer que todos os três projetos para o viaduto da rua Duque de Caxias, posteriormente batizado de Otávio Rocha em homenagem ao falecido prefeito, estão longe de poderem ser considerados modernos em termos de estilo arquitetônico. Muito embora já houvesse, desde o início do século XX, movimentos no sentido de despojar as construções de seus elementos decorativos e deixar aparentes as suas técnicas construtivas, essas tendências estilísticas ainda demorariam a tornar-se dominantes nas construções de obras públicas e privadas nas cidades brasileiras. Assim, o que se vê nestes três projetos é ainda um grande apego à tradição arquitetônica historicista, especialmente por parte de Christiano Gelbert, passando por uma solução mais depurada no projeto de Duilio Bernardi e chegando ao classicismo despojado de Itaqui, ostentando já alguns motivos decorativos geometrizados do art déco. Se os três são estilisticamente semelhantes, nas suas soluções e funcionalidades, porém, o projeto de Itaqui ganha em monumentalidade e inteligência no aproveitamento de espaços tanto no próprio muro de arrimo quanto no percurso sob o viaduto.

A Federação - 24-03-1927 p2 - Borges de Medeiros projeto - BN Hemeroteca Digital
A Federação – 24-03-1927 p2 – Borges de Medeiros projeto – BN Hemeroteca Digital

Avenida Borges de Medeiros[3]

Do relatorio feito pelo dr. Fernando Martins, engenheiro-chefe das obras novas de Porto Alegre e apresentado ao dr. Octavio Rocha, intendente municipal, constam varias informações interessantes que vamos resumir.

A Avenida Borges de Medeiros será a mais importante via publica da cidade, tendo por fim descongestionar o trafego, permitir o acesso directo e rápido entre o centro e os arrabaldes do quadrante sul.

Considerava o dr. Fernando Martins com condições ideaes, traçado em recta, perfil de longa concavidade nas duas vertentes, apresentando como motivo esthetico predominante, ao alto e ao fundo das perspectivas, o viaducto da rua Duque de Caxias, e largura de 30 metros.

Quando o engenheiro Fernando Martins tomou a direção dos trabalhos, a largura era de 21 metros. Elevou-se desde logo essa largura para 24 metros e o governo do Estado opinou pela largura de 28 metros, para respeitar os dois maiores edifícios, na rua Duque de Caxias. Foi esta a largura adoptada.

Quanto ao declive máximo era elle de 7%. O governo do Estado opinou pelo de 6%, ficando também com definitiva.

Todos os projectos concordaram ao traçado do ramo sul da Avenida, garantindo excelente perspectiva nesse trecho, entre Duque de Caxias e Coronel Genuino.

O estudo girou em torno do outro ramo, entre Duque de Caxias e a praça Montevidéo.

Obrigada á acção através de uma faixa determinada que não comporta a resolução do problema pela simples atenção do perfil longitudinal, a comissão de obras novas procurou, no traçado em questão um resultado que, restringindo de um lado a visão sobre a superfície convexa, justamente na zona mais critica, oferecesse ao observador uma nova impressão da Avenida, com trecho perfeitamente distincto, rectilineo, de pequena declinidade, tendo como motivo final, fechando a sua perspectiva, o Palacio Municipal, um dos edifícios de valor architectonico que Porto Alegre deve á administração do dr. Montaury[4].

Este designio foi atingido, lançando o eixo da Avenida no ramo Sul, seguindo duas rectas, uma proximamente normal ao viaducto; outra, com igual orientação sobre a fachada da Intendência e concordando os dois alinhamentos, uma grande curva de 390 metros de raio que se desenvolve entre as ruas dos Andradas e Riachuelo.

O traçado referido permite:

1º – Que o observador, ao sair da curva, olhando para o Sul, tenha como perspectiva, no fundo a projecção completa do viaducto alternando o desagradável effeito da convexidade.

2º – Que o trecho entre a rua dos Andradas e Riachuelo, o mais critico, onde o observador teria a vista do viaducto interceptada pelo perfil defeituoso, parecendo-lhe que a Avenida projectava-se no ar, sem uma conclusão, desapareça, dando lugar a novo quadro, onde a restriccção do campo visual é compensada pelo maior movimento que se póde emprestar ás massas architectonicas, dispostas em curva, alliadas ao effeito feliz de uma arborisação adequada.

3º – Que o trecho final, novo ainda no seu aspecto, apresente uma certa grandiosidade, tendo ao fundo, como remate, da importante artéria, a sede do governo municipal.

Foi este o traçado aprovado pelo governo do Estado.

As condições adoptadas de 28 metros de largura e traçado em curva, exigem que se faça a demolição dos seguintes prédios:

Praça Montevidéo – Ns. 3, 7, 9, 11, 13 e 15.

Rua 15 de Novembro – Ns. 6, 8, 10, 12, 14, 16 e a esquina; 1A, 1B, 1C, 1D e 1E.

Rua dos Andradas – Ns. 238, 240, 242, 244, 246 a 252, 262, 264. Os de ns. 254, 256, 258 e 260 já são da Intendência. Há ainda do lado oposto a desapropriar os ns. 439 e 441, 447 e 449. Os de ns. 443, 445 e […] já pertencem á Intendencia.

Rua Andrade Neves – Ns. 88, 90 e 92. Os de ns. 80, 82, 84 e 86 já pertencem á Intendencia. No lado oposto os de ns. 79, 81 e 81A.

No trecho entre Rua Nova e Duque de Caxias quase tudo está desembaraçado, faltando apenas os seguintes:

Entre Andrade Neves e Riachuelo – Números 6, 8, 10, 12, 14 e 16.

Na Rua Riachuelo – Ns. 276, 278 e 314. O de n. 309 já pertence á Intendencia.

Na rua Duque de Caxias – Ns. 342, 233 e 236.

Na rua Demetrio Ribeiro – Ns. 253 e 255.

Na rua Coronel Genuino – Parte dos ns. 58 e 60, nos fundos.

General Paranhos, entre Riachuelo e Jeronymo Coelho – Ns. 23, 30 e 44.

Há faixas de terrenos a desapropriar entre J. Coelho e Duque de Caxias.

O intendente vae tratar de apressar a construção do viaducto, para o que já teve uma conferencia com o dr. Fernando Martins.

Enquanto se faz essa constricção vão ser desembaraçados já os trechos em andamento para concluil-os.

Em seguida vae o intendente combinar a mudança das casas Gonçalo Henrique de Carvalho, Atlas, Nunes Dias, Bazar Rosa, que vão ser totalmente demolidas, bem como as casas de negocio da rua 15 de Novembro e Praça Montevidéo, afim de evitar prejuízos sérios que uma mudança precipitada acarretaria.

É esta a boa nova que a Federação dá hoje, aos seus leitores, anunciando que em relativo curto lapso de tempo, dado o vulto da obra, Porto Alegre terá construído a sua mais bela e mais importante avenida, a Borges de Medeiros.”

Autoria desconhecida

Referências:

FESTUGATO, Taísa. A arquitetura de Christiano de La Paix Gelbert em Porto Alegre (1925-1953). Dissertação de mestrado, 180 p. Programa de Pesquisa e Pós-gradução em Arquitetura, UFRGS. Porto Alegre, 2012.

Notas:

[1]Tratamento da parede imitando grandes pedras talhadas.

[2] FESTUGATO, 2012, p. 40.

[3] A Federação, 24/03/1927, p. 2. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho.

[4] José Montaury de Aguiar Leitão, prefeito de Porto Alegre entre 1897 e 1924.

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