Maria Lídia Magliani (1946-2012). "Ela". Lápis de cera e lápis de cor sobre papel, 1977. Acervo MARGS.

“…francesas de todas as nações da Europa”

Da série de crônicas tratando do quotidiano dos cabarés, Russa, escrita pelo poeta e jornalista Theodemiro Tostes (1903-1986), parece ser uma tentativa de perscrutar a melancolia de um tipo de francesa especialmente deslocada na paisagem dos pampas. Ainda que fossem chamadas assim, pois a França era então o centro irradiador da sofisticação e requinte modernos, essas francesas eram mulheres “de todas as nações da Europa”, uma vez que eram jovens traficadas para as Américas e destinadas à exploração sexual.

Em seu texto, o autor parece querer retratar o especial exotismo destas francesas que vinham de tão longe, trazendo consigo não só o mistério, mas a melancolia de uma vida num mundo tão diferente.

“Russa[1]

Chama-se Kátia. Abreviação gostosa de um nomezinho complicado. Usa cabelo ruivo, bolchevista. Mas em matéria de convicções é moderada.

Por exemplo, não bebe. Não atura caviar nem Stravinski. E dança mal, tão mal, que chega a entusiasmar os seus espectadores.

Quando está só, o olhar se perde no indefinível de uma estepe. Talvez viva o passado lá tão longe, com amores honestos e ritmos claros da kamarinskaia[2], Ou, talvez, sonhe, apenas, o seu amor daquela noite, o coronel, champanha e um blue gemendo a sua dor negra.

Katia é uma flor exótica neste salão onde há espanholas de toda a América do Sul e francesas de todas as nações da Europa. É autêntica. E traz no olhar alontanado sua certidão de nascimento.

Maria Lídia Magliani (1946-2012). "Ela". Lápis de cera e lápis de cor sobre papel, 1977. Acervo MARGS.
Maria Lídia Magliani (1946-2012). “Ela”. Lápis de cera e lápis de cor sobre papel, 1977. Acervo MARGS.

Porque há dor nos seus olhos. Dor de séculos. Aquela dor profunda e sem literatura, que é para nós o exotismo e o gosto novo da alma russa. Como há dor nos seus gestos alucinados quando baila. A dor desengonçada de se sentir intraduzível.

Porque Kátia não baila, precisamente. Faz de conta. E a sua dança não passa de um pretexto, para ela exibir as pernas musicais e fisgar coronéis bestificados”.

Referências:

[1] TOSTES, Theodemiro. Bazar e outras crônicas. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva: IEL, 1994. P. 203. O texto foi originalmente publicado no livro Bazar pela Livraria do Globo, em 1931.

[2] Dança tradicional do folclore russo.

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