Talvez uma das maiores dificuldades de se tentar recriar uma época já distante numa história em quadrinhos seja manter alguma fidelidade com a linguagem popular ,do quotidiano e das pessoas comuns daquele tempo.
No caso do Brasil, sabe-se que o português corrente teve um grande aporte das diversas culturas e línguas africanas que aqui aportaram devido ao tráfico atlântico de africanos escravizados. Conforme Ricardo Mendonça (2012), “o negro influenciou sensivelmente a nossa língua popular. Um contato prolongado de duas línguas sempre produz em ambos fenômenos de osmose.”[1] Nesse sentido, a especialista Yeda Pessoa de Castro detalha esse processo da seguinte forma:
Inicialmente, o contingente de negros e afro-descendentes erasuperior ao número de portugueses e outros europeus, durante três séculosconsecutivos […]. Aqui, merecem destaque a atuação socializadora da mulhernegra na função de mãe-preta no seio da família colonial, e o processo desocialização lingüística exercido pelos negros ladinos, aqueles que, aprendendorudimentos de português, podiam falar a um número maior de ouvintes, einfluenciá-los, resultando daí por adaptarem uma língua a outra e estimularem adifusão de certos fenômenos lingüísticos entre os não bilíngues.[2]
Ainda assim, dificilmente sendo registrado pela língua escrita nos documentos oficiais, esse português popular aparece na literatura e imprensa em estreita associação com personagens negros. O primeiro exemplo encontrado vem da charge publicada na Revista Ilustrada (1884):
Nela, pode-se ler a seguinte legenda:
“- O-ô cuô i lê lê, pai Zuão. Sabe? Nós vá fica tudo foro.
– É é!
-Siô Clapi dá carta de liberdade á todo afiricano.
– [Nê/]Uê!”[3]
Nesse diálogo pode-se reconhecer o que parece ser uma influência ainda mais forte das línguas sub-saarianas no português falado pelos dois personagens. Um pouco mais tarde, mais especificamente em Porto Alegre, no romance O Perdão (1910), de Andradina de Oliveira, também podemos encontrar o registro de linguagem semelhante nas personagens negras da história:
Resmungando pôs-se a cortar a vianda em tantos pedaços quantoos pobres – cambuiada de vadio! E a gente que se amole, que se alevanteco’escuro, prá enchê a pança dos vagabundo! Esgargados doinferno! Inté lambem os prato, os fedorento! Como não haveráde sê! Onde os nojento vão acha mió petisco![4]
e
-Pobre véia. Cá coitada, que é da famia, poucose importam… O que sa Zina gasta com a cambuiada dos vadiodava pra sa Barutinha vivê sossegada num cantinho; mais é tudo prá os mauagardecido! Insmola escondida não é bonito. É mió entrá a cambuiada:ansim o povo pensa que tudo aqui tem bão coração! Despois os nomevai prá o jorná. A Eva é burra mais entende as coisa.[5]
Da mesma forma, o romance Clara dos Anjos (1922), de Lima Barreto, traz expressões bastante semelhantes na passagem em que a personagem Inês, uma mulher negra, vem confrontar Cassi Jones numa taverna dos becos do Rio de Janeiro:
De dentro da taverna, com passo apressado, veio ao seuencontro uma negra suja, carapinha desgrenhada, com um caco de penteatravessado no alto da cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete.Estava meio embriagada. […]
A negra, bamboleando, pôs as mãos nas cadeiras e fez comolhar de desafio:
– Então você não me conhece mais, ‘seu canaia’? Então vocênão ‘si’ lembra da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você…
[…]
– Você sabe onde ‘tá’ teu ‘fio’? ‘Tá’ na detenção, fique vocêsabendo. ‘Si’ meteu com ladrão, é ‘pivete’ e foi ‘pra chac’ra’. Eis aí o quevocê fez, ‘seu marvado’, ‘home mardiçoado’. Pior do que você só aquelagalinha-d’angola de ‘tua’ mãe, ‘seu’ sem-vergonha!
[…]
– ‘Oie’ – disse ela, para os circunstantes -; ele diz que nãoé o tal. Agora ‘memo se acusou-se’, quando chamei a ratazana da mãe dele degalinha-d’angola… É uma ‘marvada’, essa mãe dele – uma ‘véia’ cheia de‘imposão’ de inglês. Inglês, que inglês…
[…]
– ‘Tu’ é ‘mao’, mas tua mãe é pior. Quando ela descobriu‘qui’ eu ‘tava’ com ‘fio’ na barriga, ‘mi pois’ pela porta afora, sem pena, semdó ‘di’ eu não ‘tê pronde í’. E o ‘fio’ era neto dela e ela ‘mi’ tinhacriado… Vim da roça… Ah! Meu Deus! Se não fosse uma amiga, tinha posto o‘fio’ fora, na rua, que era serviço… Deus perdoe a ‘tua’ mãe o que ‘mi’ fez‘i’ a meu ‘fio’, ‘fio’ deste ‘qui tá i’, também, Deus lhe perdoe! […][6]
Nos dois casos mais recentes, pode-se perceber a proximidade que as expressões populares do início do século XX ainda guardam com muitas ainda correntes no século XXI, indicando a sensível permanência da influência das línguas da África subsaariana no português brasileiro da contemporaneidade.
Referências:
[1] MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. Brasília : FUNAG, 2012. E-book disponível em http://funag.gov.br/loja/download/983-Influencia_Africana_no_Portugues_do_Brasil_A.pdf p. 80.
[2] CASTRO, Yeda Pessoa de. Das línguas africanas ao português brasileiro. In: Patrimônio – Revista Eletrônica do IPHAN. Dossier Línguas do Brasil. Artigo disponível em http://www.labjor.unicamp.br/patrimonio/materia.php?id=214
[3] Revista Ilustrada, ano 9, n. 378, 1884, p. 8. In: SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e abolição da escratura: uma investigação de história cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 18.
[4] OLIVEIRA, Andradina. O Perdão. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2010 [1910]. P. 60.
[5] OLIVEIRA, Andradina. O Perdão. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2010 [1910]. P. 79.
[6] BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. [1922] Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro. E-book disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000048.pdf. pp. 65-66.