Durante toda minha pesquisa iconográfica sempre notei que, na passagem da década de 1910 para a de 1920, algumas mudanças sensíveis ocorreram na moda feminina. Muito embora eu já soubesse que a Primeira Guerra houvesse mudado radicalmente o modo de vestir das mulheres nas cidades européias e, por circulação de idéias e costumes, também nas brasileiras, um singelo artigo do jornal “Novidades”, de 1923, me chamou atenção pois trata das cores da moda.
O articulista desconhecido lamenta a moda das meias coloridas, elogiando as meias pretas como mais elegantes e modeladoras das pernas femininas. Observando diversas fotos dos anos imediatamente anterior, é fácil notar que as meias escuras pareciam mesmo predominar, dando um visual bem mais austero à silhueta feminina.
Revista Mascara, Ed00020, 1918, p. 16. Hemeroteca da
BNDigital. Fotógrafo desconhecido.
Revista Mascara, Ed00020, 1918, p. 30. Hemeroteca da
BNDigital. Artista desconhecido.
Revista Mascara, Ed00045, 1919, p. 20. Hemeroteca da
BNDigital. Fotógrafo desconhecido.Jornal Novidades, Ed0003, 1923, p. 3. Hemeroteca da
BNDigital.
Mas os anos 1920 trariam, possivelmente na trilha do prestigioso Paul Poiret, as cores vibrantes para a moda das mulheres, e, com elas, também os adereços coloridos começavam a invadir as ruas de Porto Alegre na hora do footing[1].
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Desolado, o articulista cita mesmo alguns pontos da cidade em que a moda nova seria perceptível:
[…] basta uma ligeira inspecção, mesmo feita pelo olhar distraido de algum melancolico frequentador do ponto de bondes, – nos escriptorios da Força e Luz, ou á frente do Cinema Central – para se vêr que já não ha quase meias pretas.[2]
Não satisfeito, o autor interroga uma “suprema autoridade”, no entanto já tendo alertado para a “incorrigivel volubilidade do sexo fraco”. Inconformado, ouve que “o que está em contacto com a pelle deve ser claro, fresco, luminoso”.
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Abaixo, a transcrição da coluna na grafia da época:
O gosto das bellas e… o bom gosto
A meia preta, de sêda, que era, até há pouco tempo, o encanto e o prestigio dos tornozellos femininos, está fora de moda. Não é de estranhar que morra de vez, dentro em breve, batida pela meia de côr. Neste caso, uma única hypothese haverá em que a mulher a possa admittir: a do luto rigoroso, ainda assim enquanto a incorrigivel volubilidade do sexo fraco – souvent femme varie…[3] – não determinar que mesmo nessa emergencia é de bom tom um vestido negro caindo sobre uma meia roxa, que é a cor da saudade e da dôr…
Como quer que seja, basta uma ligeira inspecção, mesmo feita pelo olhar distraido de algum melancolico frequentador do ponto de bondes, – nos escriptorios da Força e Luz, ou á frente do Cinema Central – para se vêr que já não ha quase meias pretas. E foi isto o que nos levou a um ligeiro inquerito jornalistico sobre o assumpto. Morta a meia preta, qual a côr preferida? Estariamos, porventura, na imminencia de uma ressureição da antiga meia branca, posta em voga pelas avós de hoje, quando ellas eram as moças chibantes [?] do seu tempo?
A suprema autoridade a quem recorremos, na ancia de transmittir ao publico uma opinião digna de acatamento, deu-nos sobre a materia todos os esclarecimentos. A meia preta, pensa ella, é uma heresia. O que está em contacto com a pelle deve ser claro, fresco, luminoso. De resto, o verdadeiro bom tom é usar meias que combinem com a côr do vestido.
– E se o vestido fôr preto?
– Neste caso, as meias devem ser sempre claras.
Assim, é na verdade uma guerra contra a meia preta o que o mundo feminino declara. O vestido preto é o único que não tem o direito de exigir meias da mesma côr… Há, além disso, um argumento de ordem economica: trata-se de uma meia mais fraca e nem por isso mais barata. A tinta preta enfraquece o tecido, tendo tambem a desvantagem de desbotar, sujando os pés, ao passo que as meias claras offerecem maior resistencia e, pois, têm maior durabilidade, sendo mais accesiveis á lavagem e á serzidura.
Resta saber se uma perna calçada em meia clara fica tão bem modelada e tão attraente como as que ostentam uma bella meia preta de seda transparente. Consultadas as mulheres, certamente teriamos a opinião geral de que as penas são o que vale e não o que representam as meias. Mas nem por isso deixaria de vir a proposito a citação de dois versos de Musset, que illustram o assumpto:
‘C’est mon avis qu’em somme um bas blanc bien tiré
Est le bonheur supreme…’.[4]”
Em suma, gosto de aprender sobre como as cores foram sendo usadas na moda e na sua história, pois até mesmo algo tão simples como uma cor de meia pode revelar muito sobre as sensibilidades de um momento. O jornalista, claramente saudoso, não teve chance alguma contra a determinada entrevistada, que reafirmou, o que na verdade, provavelmente era uma manifestação de autonomia feminina. Vale lembrar que, na imprensa da época, muito se discutia sobre o feminismo e um dos seus efeitos foi não apenas a inserção maior das mulheres no mundo do trabalho e da esfera pública, mas também a opção por roupas práticas e leves, especialmente para o clima brasileiro.
[Autor desconhecido] “Novidades”,
1923, Ed0003, p. 3. Hemeroteca da BNDigital.
[1] Termo popular da virada do século XIX para o XX que descrevia o passeio social ao longo da Rua da Praia ao entardecer. Era onde as senhoras, senhores e senhoritas da sociedade saíam para verem e serem vistas.
[2] “Novidades”, 1923, Ed0003, p. 3. BNDigital. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=846554&pesq=
[3] “Frequentemente a mulher muda de idéia…” (tradução da pesquisadora)
[4] “É minha opinião que uma meia branca bem esticada é a felicidade suprema” (tradução da pesquisadora)