Você sabia que Porto Alegre “importou” operários de Santa Catarina para trabalhar nas suas grandes obras urbanas da década de 1920?
Pois nesta rara reportagem sobre o quotidiano de trabalhadores como estes, é possível ver as condições de trabalho e a visão que se tinha do trabalho como valor em si. Especialmente numa época em que a transição do trabalho escravo para o trabalho livre, os discursos oficiais em torno dos trabalhadores e do trabalho se davam muito no sentido de glorificar o esforço e a diligência, despolitizando questões como direitos a descanso e moradia, ou a justeza das remunerações. No caso desta reportagem, pode-se notar a descrição “pitoresca” das fendas nas paredes do galpão em que os catarinenses estavam acomodados, porém chama a atenção para o que o repórter considera como alimentação insuficiente para o trabalho exigido.
A cidade havia a recém passado por o que provavelmente foi seu primeiro estremecimento nas relações entre trabalhadores e empregadores, na famosa Greve Geral de 1917, então é preciso ler matérias como estas com bastante cautela. Nela, nota-se ao final um certo grau de infantilização dos trabalhadores, que ainda não tinham sua cidadania e direitos plenamente reconhecidos.
Abaixo, parte da matéria do Correio do Povo de 17/1/1929 sobre os canteiros de obras que se multiplicavam pela Porto Alegre da década de 1920:
“No acampamento dos ‘catharinas’[1]
Terminava a nossa jornada de investigação cujos fructos consideramos a justa paga dos esforços alegremente dispendidos.
Volvemos, então, os olhos para o reducto dos ‘Catharinas’, como pittorescamente foram alcunhados por seus proprios colegas os operarios do Estado limitrophe que se encontram trabalhando na capital.
Seu numero attinge a 500 mais ou menos e moram todos, como tivemos opportunidade de alludir em outro local desta nota, num acampamento junto a estação do Riacho[2].
Para ali nos dirigimos ao meio dia, hora especialemente indicada não só porque a colonia se encontra reunida para as refeições como tambem por auxiliar o apanhado photographico.
Minutos depois nos encontravamos em pleno reducto catharineta; um pittoresco ajuntamento de cinco galpões de madeira e zinco dos quaes dois de grandes dimensões e tres bem menores.
O primeiros delles, á esquerda de quem entra, apresente esse dístico a cal ‘Galpão dos polaco’. Seu interior, cujo aspecto se reproduz em pequenas variantes nos demais, é de um colorido suggestivo:
Leitos das formas mais varias e extravagantes, malas, bahús e uma infinidade de objectos e utensilios familiares, tomam-n’o totalmente numa interessante confusão.
Nas paredes collam-se folhas em aberto de jornaes, paginas de revistas illustradas, addiccionando ao principio decorativo o espirito pratico de evitar a entrada do ar nocturno pelas trinchas.
No segundo galpão uma graciosa legenda indicava a existencia ali do ‘Restaurant Fogões de ‘Latta’, nelle fomos encontrar um dos capatazes de turma que nos prestou varios informes, em parte registrados, auxiliando-nos tambem, quanto a obtenção de photographias que, accrescentou, só poderiamos obte-las no pateo do acampamento.
Aceitamos o alvitre e descemos a pequena escada que nos conduzira até o quarto do nosso ‘cicerone’.
Os catharinas preparavam o seu repasto. Alegres, cantavam uma velha [?] de compassos lentos, motivo da sua terra natal, trechos esparsos de algum canto ingenuo de ninar…
Sua pronuncia é caracteristica e cantante. A phrase de rapido enunciada, muitas vezes, até, confuzo tem qualquer coisa de escala em solfejo.
Riem-se. Não querem se deixar retratar. Um delles chega a dizer que nós desejamos ‘fazer troça delles’. Outro pergunta em que cinema vão levar ‘aquella fita’. Informamos que não se trata de filmagens, o ‘Correio do Povo’ deseja fixar, numa de suas paginas a sua suggestiva ‘colonia’.
Deixam-se convencer e o resultado ahi está nesses grupos sorridentes emprestando ao descolorido da chronica o tom vivo de uma alegria sem malicia.
Vem depois o almoço. Aqui se torna necessario dizer que achamo-lo insufficiente e desprovido dos elementos necessarios ao trabalho em que se empenham as energia que elle deve manter em pleno e saudavel equilibrio:
Um prato cheio de feijão com farinha acompanhado de um naco de carne, cuja quantidade e principio nutritivo não se indicam como os mais aconselhaveis.
Mas a alegria barulhenta dos ‘catharinas’ de novo nos distrahe a attenção. Brincam. Dizem pequeninas perficias, num ar jocoso de creanças contentes.
Deixemol-os lá. Seu contacto nos deixou uma impressão de encantamento, com a ingenua felicidade que os anima, dentro do seu sonho constante de regresso. Porque a alegria do proximo tambem e feita um pouco das nossas proprias e melhores alegrias…”
[Autor desconhecido]
Referências:
Correio do Povo, 17/1/1929, p. 9. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho de Porto Alegre.
[1] A grafia original foi mantida.
[2] Referência à ferrovia do Riacho, linha férrea que fazia transporte primeiramente de esgoto cloacal para fora da cidade, no início do século XX, e depois de passageiros da região da Praia de Belas à zona sul de Porto Alegre. Ficava próxima ao Areal da Baroneza e Cidade Baixa, territórios de ocupação negra e modesta à época.