A modernidade trazia a remodelação para Porto Alegre, e com ela a vontade de disciplinar o espaço urbano. Nos antigos becos que iam sendo abertos em belas e modernas avenidas, bem iluminadas, os costumes marginalizados, como a prostituição, não podiam ser admitidos, e os veículos de imprensa faziam coro aos planejadores urbanos e autoridades, condenando a prática e clamando que fosse limitada à “zona estabelecida pelas autoridades”.
A reportagem do Correio do Povo de 24/09/1929 atesta como, na visão de autoridades e imprensa, a área central da cidade deveria ser livre de costumes marginalizados como a prostituição. Denunciando o ‘Baar Estrella’, em plena Vigário José Inácio, no coração da cidade, como um estabelecimento clandestino de prostituição, o jornal aponta que a sua correta localização deveria ser a rua 3 de Novembro, o famoso Beco do Oitavo[1], talvez o mais famoso por abrigar tavernas, bordéis e todo tipo de costumes marginalizados à época.
Afinal, temia-se que a presença de mulheres decahidas e individuos suspeitos nas mesmas ruas onde circulavam respeitáveis cidadãos e suas famílias pudesse contaminar os seus bons costumes, ou corromper a pureza de seus filhos e, especialmente, suas filhas.
Ou seja, era preciso separar a “cidade respeitável” da “cidade maldita”, como diria a historiadora Sandra Pesavento. Mas a disputa pelo espaço central continuava, como mostra a reportagem:
“O ‘Baar Estrella’, situado no coração da cidade, transformado em casa de prostituição[2]
Um apello á chefia de Policia
Um dos maiores passos dado, até hoje, pela policia de Porto Alegre foi, sem duvida alguma, o da localisação do meretricio.
Essa louvavel iniciativa deve-se ao 1º delegado-auxiliar dr. Argimiro Indio Brasileiro Cidade que, há varios mezes, vem empregando seus esforços no sentido de affastar as decahidas da zona central da cidade.
A benefica campanha veiu ao encontro dos desejos da população que vem acompanhando com o mais vivo interesse os esforços daquella autoridade.
A zona destinada ao meretricio é, como se sabe, a rua 3 de Novembro e travessas. A maioria das infelizes mulheres, attendendo ao appello do 1º delegado auxiliar que, nesse sentido, agiu com toda a habilidade e prudencia, concordou em abandonar suas casas, situadas nas ruas Paysandu[3], Riachuelo, dr. Flores, Jeronymo Coelho e Andrade Neves, para fixar residencia na zona estabelecida pelas autoridades.
Outras decahidas, entretanto, vêm procurando burlar a acção da policia, procurando morar em casas situadas no centro da cidade, onde disfarçadamente mercadejam, seu corpo.
Em face da campanha moralisadora da policia, muitas caftinas procuram estabelecer-se no centro com casas de bebidas.
Essas casas não passam de ‘antros’ de corrupção. Uma dellas e a que mais se destaca é o ‘Baar Estrella’, localisado á rua Vigario José Ignacio n. 306, nas proximidades da avenida São Raphael.
São innumeras as queixas contra esse bar. Indignados, diversos moradores da referida rua estiveram na redacção desta folha, solicitando providencias afim de que cesse, de vez, com esse abuso.
O nosso reporter-policial sondou, por alguns dias, o ‘Baar Estrella’.
Nota-se, ali, a todo o momento, um entra e sae de mulheres da vida facil e individuos suspeitos. No interior do bar, na sala principal, existem quatro ou cinco mesas, além de um balcão sobre o qual se apoia uma bomba de ‘chopp’. Poucos são os que vão, ali, com a intenção de beber. A casa em questão está abarrotada de quartos immundos, onde homens e mulheres se entregam aos mais repelentes vicios, debaixo de forte algazarra.
É proprietaria dessa casa de tolerancia a mulher de nome Josephina Jetz, muito conhecida de policia e que aufere bons lucros, explorando as infelizes decahidas.
Quer-nos parecer que o local apropriado para uma casa dessa natureza é a rua 3 de Novembro.
Não é admissivel, pois, que Josephina Jetz continue a crear embaraços á louvavel acção da policia, com o seu meretricio disfarçado.
A população deseja vêr as ruas centraes expurgada [sic] dessa especie de gente.
O desembargador Florencio de Abreu, chefe de Policia, que tem sido incançavel em prestar seu decidio apoio à campanha moralisadora, em boa hora encetada pelo 1º delegado-auxiliar, não permittirá, por certo, que o ‘Baar Estrella’ continue localisado numa zona de movimento de familias, como é a rua Vigario José Ignacio.
O meretricio disfarçado espalha-se, a cada momento, por toda a cidade e uma providencia energica se impõe contra tal abuso.”
Referências:
Correio do Povo, 24/09/1929, p. 5. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho de Porto Alegre.
[1] Atualmente, a rua André da Rocha, na Cidade Baixa.
[2] A grafia original foi mantida.
[3] Atual rua Caldas Júnior. Anteriormente, era conhecida como o Beco do Fanha, e depois como rua Paysandu. É um dos espaços de tavernas, casas de prostituição e jogos mais antigos de Porto Alegre.