Este beco de nome curioso estende-se somente ao longo da encosta norte, indo do Guaíba, após os sucessivos aterros do século XIX, até a antiga Rua da Ponte (rua Riachuelo). Nesse sentido, apresenta o padrão típico das ruas travessas das cidades coloniais do urbanismo português, ligando duas ruas principais (a Rua da Praia e a Rua Riachuelo).
Localizado onde hoje situa-se a Rua Caldas Júnior, o Beco do Fanha era próximo à Praça da Alfândega, um dos espaços mais importantes da cidade até hoje. Este logradouro também foi conhecido como beco do Inácio Manoel Vieira, do Quebra Costas e aparece nomeado na planta de 1881 como Travessa Payssandu. Nas suas memórias, publicadas pela primeira vez em 1881, Antônio Álvares P. Coruja explica a origem do nome “Fanha”:
Em um beco onde era principal proprietário Inácio Manoel Vieira, avô materno do Dr. Paranhos e do professor do mesmo nome em S. Leopoldo, e por isso denominado então Beco de Inácio Manoel Vieira, foi morar o taverneiro Francisco José de Azevedo que nem fanhoso era, e apenas tinha voz de endefluxado; e como todos o chamavam – Fanha – aí ficou o nome de Beco do Fanha. E as edilidades, que tão solícitas têm sido em mudar os nomes das ruas, deram-lhe um nome enviesado, que uns dizem Paissandu e outros Passandu.[1]
Por sua vez, o também cronista Achylles Porto Alegre corrobora esta versão, detalhando ainda que
‘Fanha’ era o appellido do taverneiro Francisco José de Azevedo, estabelecido no local. Devia esse appellido á sua voz nasalada. Foi elle o primeiro morador – isto em 1800. Edificou casa na rua dos Andradas, bem no centro da quadra que então ia da rua Clara á da Ladeira. Julgando necessaria a abertura de uma outra rua, entendeu deixar a largura que hoje forma o becco do Fanha [grifo da pesquisadora], onde construiu outra casa á moda do tempo, com rotulas pintadas de verde, que em 1895 foram demolidas por ordem da Intendência.[2]
É interessante notar que, naqueles primeiros anos dos 1800, o cronista indica que o surgimento deste logradouro se deu por iniciativa do seu primeiro morador, que também arbitrou a largura necessária para o trânsito na via. Isso dá uma idéia da iniciativa de particulares no planejamento da cidade, já que sua ocupação deveria ser muito menor do que é hoje. Nesse sentido, Sandra Jatahy Pesavento já afirmava que a ocupação dos becos se deu de maneira até certo ponto espontânea, possivelmente fora das normas da época[3], e Sérgio da Costa Franco corrobora essa hipótese ao relatar a descontinuação do beco por provável intervenção de particulares no espaço público:
Curiosa particularidade dessa rua, que as atas da Câmara revelam: segundo seu traçado original, o beco deveria subir o morro em direção à Rua Duque de Caixas [Rua da Igreja], continuando-se no que é hoje a Rua General Auto. Mas já em 1829 a passagem morro acima achava-se vedada ‘por ter o Exmo. Visconde de São Leopoldo, em tempo que serviu de Presidente desta Província, amurado os terrenos de sua propriedade e estreitado a largura do dito beco’, segundo consta de um requerimento de Manoel Antônio de Magalhães, mencionado em sessão cameral de 26/5/1829. Referência que ratifica a existência desse segmento do Beco do Fanha, abortado pelo desuso ou usurpado por proprietários privados [grifo da pesquisadora], pode-se também ler na ata da edilidade em 17/2/1834, que fala na ‘continuação da rua ou beco denominado de Inácio Manoel Vieira a sair à rua da Igreja [Rua Duque de Caxias].’[4]
Por outro lado, o memorialista Coruja traz um indício interessante da posição de enclave deste beco em meio a um entorno de casas mais abastadas quando afirma que, próximo a ele, situava-se a primeira casa a ter janelas envidraçadas em Porto Alegre:
A grande casa da rua da Ponte perto do beco do Fanha pertencente a Manoel Antônio de Magalhães […] É esta a primeira casa envidraçada de Porto Alegre; e daí datam as janelas de vidraça e o progressivo mas lento desaparecimento das rótulas e janelas de pau.[5]
Mais tarde, Walter Spalding relata que a referida Rua da Ponte (atual Rua Riachuelo) deve seu nome à ponte existente na altura do Beco do Fanha, que seria, segundo o autor, uma das vias de escoamento das águas pela encosta:
A falta de água, é bem verdade, não se fez sentir, pois que, além de ficar, a capital, nas margens do Guaíba, havia em tôda encosta da colina de granito, boas fontes de águas cristalinas que deixavam o precioso líquido dentro das casas construídas na encosta. A água era, então, coletada em fontes feitas no solo e o que sobrava ia, por canaletas, diretamente para o Guaíba. Nasceram, assim, as ruas da Ponte e do Arroio. A ‘ponte’ da Rua da Ponte ficava na boca da atual Caldas Júnior (ex-Beco do Fanha). No local do edifício destinado ao Arquivo Público, nos fundos do Teatro São Pedro, existia uma enorme fonte feita pelas águas que surgiam dentre as rochas, formando substancial arroio que descia pela atual Caldas Junior e se lançava no Guaíba atravessando a Rua da Praia, onde também havia uma ponte.[6]
Como beco que se preze, no do Fanha “suas moradoras distinguiam-se pela “vida alegre”, e entre elas se contavam as “Tagarras e as Potreiras e outras da mesma vida.”[7] Mais uma vez, tem-se a caracterização de personagens marginalizados, como no caso das prostitutas. Porém, já no último quartel do século XIX, Franco afirma que “a rua talvez começasse, então e melhorar de status: ali morava, então, na casa de nº 33, o ilustre médico, escritor e político Dr. José Antônio Caldre e Fião”[8].
Contudo, é provável que também a sua proximidade à Praça da Alfândega tenha acelerado os melhoramentos do logradouro, pois Franco relata que, já no início do século XX, esse beco foi alvo de substanciais melhoramentos:
Na administração do Intendente José Montaury [1897-1924], o beco veio a perder suas características primitivas, sendo alargado em sete metros do lado da numeração ímpar, ficando com a largura de 13 metros, maior que a de várias ruas centrais consideradas nobres. Os trabalhos tiveram um desenvolvimento lento, mas em 1919 já se achavam praticamente concluídos. A construção do primeiro prédio da Caixa Econômica Federal, na esquina da Rua 7 de Setembro, de A Federação e do Grande Hotel, na esquina da Rua dos Andradas, concorreram decisivamente para inovar a imagem da Travessa Paysandu (ou brasileiramente Paissandu), que os velhos ainda insistiam em chamar de Beco do Fanha.[9]
“[…] o novo e bello edificio dos nossos collegas d’A Federação, o importante orgam politico. É, como se vê, uma construcção magnífica, quer pela sua feitura architetonica, quer pela sua linha de severa harmonia. Foi seu autor o engenheiro Theophilo Borges de Barros.”
Assim descrita na revista A Máscara, a nova sede do jornal “A Federação” já tinha um antecedente no beco, relatado por Achylles Porto Alegre:
O edificio occupado pelo Jornal do Commercio ficava no meio da quadra [entre a rua da Praia e a Sete de Setembro?]. Era velho, acaçapado, com tres portas de frente para a praça [da Alfândega], e duas janellas e uma porta, aos fundos, que davam para o becco do Fanha.[10]
O beco do Fanha apresenta, pois, uma história
rica em registros e nuances, caracterizando um espaço de ocupação popular e marginalizada
inserido no coração do antigo núcleo urbano, mas que provavelmente pela sua
proximidade com uma das principais praças da cidade, foi um dos primeiros alvos
das primeiras modernizações, ainda na gestão do prefeito José Montaury
(1897-1924). Muitas destas obras foram impulsionadas pelo mercado da construção
civil aquecido na década de 1910, e que paulatinamente transformava as feições
da cidade a ponto de erguer o imponente prédio do órgão oficial de imprensa do
Partido Republicano Riograndense, à frente do governo do Estado durante quase
toda a Primeira República.
Referências:
[1]CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas; reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983. p. 20.
[2]PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre. Edição organizada por Deusino Varela para as comemorações do bicentenário da cidade e officialisada pela Prefeitura Municipal. Porto Alegre, 1940. p.16.
[3]PESAVENTO, Sandra Jatahy. Era uma vez o beco: origens de um mau lugar. In: BRESCIANI, Maria Stella (org.). Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. pp. 105-106.
[4]FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1988. pp. 91-92.
[5]CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas; reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983. p. 19.
[6]SPALDING, Walter. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967. p. 142.
[7]CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas; reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983. pp. 112-113.
[8]FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1988. pp. 91-92.
[9]FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1988. pp. 91-92.
[10]PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre. Edição organizada por Deusino Varela para as comemorações do bicentenário da cidade e officialisada pela Prefeitura Municipal. Porto Alegre, 1940. p. 121.
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