O Beco do Rosário na década de 1920.

O Beco do Rosário

Beco do Rosário, Rua 24 de Maio, Avenida Otávio Rocha?…

Vários nomes para o mesmo lugar, testemunhando cada momento da cidade. Quem hoje percorre as grandes avenidas de Porto Alegre nem sempre sabe que muitas delas um dia foram passagens estreitas, becos íngremes de trânsito difícil. O caso do velho Beco do Rosário, a atual avenida Otávio Rocha, não é diferente.

Localização do Beco do Rosário na Planta de Henri Breton (1881).
Localização do Beco do Rosário na Planta de Henri Breton (1881).

O antigo Beco do Rosário é uma via travessa que, curiosamente, destoa do padrão dos outros becos do centro histórico de Porto Alegre em sua posição relativa às vias principais. Ao invés de interceptá-las, ligando-as em ângulo reto, este beco corre quase que em paralelo à Rua da Praia. Outro aspecto o diferencia em sua relação com as ruas principais: ele não se liga diretamente a nenhuma delas, conectando a antiga Rua de Bragança (Marechal Floriano) a outro beco, este sim posicionado como travessa em relação às ruas principais: o Beco do Couto ou do Cordoeiro, ou atual Rua Senhor dos Passos. Nisso, o Beco do Rosário é comparável ao Beco do Jacques, uma vez que este também conectava uma rua principal (a Rua Duque de Caxias) a um beco (o do Oitavo).

Coruja (1983) relata as origens desta via na seguinte passagem:

“Na praça do Paraíso entre a esquina do Caminho Novo e a Rua da Praia havia uma travessa [grifo nosso] quase sem casas [grifo nosso] que dava para os terrenos do Couto. Parece que em outro tempo era beco sem nome, pois só lhe conheci o nome de Beco do Rosário depois que se edificou o templo deste nome, entre o qual e o beco nenhuma casa então havia. O nome de Beco do Rosário hoje está circunscrito às casas que rodeiam a igreja [grifo nosso], e o antigo beco deste nome tem a placa de 24 de Maio para fazer recordar o grande efeito de armas de Tuiuti.”1

Na expressão “quase sem casas”, Coruja faz referência clara à escassa ocupação da via, o que é consistente com a sua representação nas primeiras plantas de Porto Alegre. Essa baixa ocupação é também vista no caso de outros becos da cidade antiga. A julgar pelo seu relato, em sua época o nome de Beco do Rosário seria dado apenas a um segmento mais próximo à Igreja do Rosário da então Rua 24 de Maio. Contudo, segundo Achylles Porto Alegre (1940), “[a travessa] 24 de Maio: era o antigo becco do Rosario.”2

Que o nome refira-se a um marco urbano que não esteja diretamente situado no beco, mas numa rua de maior importância, como é o caso da Igreja do Rosário na Rua Vigário José Inácio (antiga Rua do Rosário), não deve surpreender de todo. Marx (1999) assinala essa escolha de referencial como recorrente nas cidades coloniais brasileiras:

“Vasculhando os nomes das vias em nossos núcleos mais antigos, encontramos os das ruas; nem sempre, poucas vezes, ou àqueles referidos, os das travessas. Aos nomes das ruas já nos referimos rapidamente com alguns exemplos ilustrativos, fáceis de evocar, ou ainda com certa frequência existentes. O das travessas são ou eram mais raros e reportados a outros referenciais [grifo nosso], como travessa do Cais, do Rosário, da Bica, travessa Velha.”3

Isso explica a nomeação inicial do beco referindo-se à antiga Igreja do Rosário, situada bem próxima. Não obstante, sua posição relativa à área do Mercado Público tornava-o um espaço de trânsito importante e frequente, conforme relata Franco (1988):

“Sendo um dos acessos à Praça 15 de Novembro e seu Mercado, o Beco do Rosário sofria com o trânsito de carretas sobre o seu calçamento. Em 1853 (jul./28), Caetano Morandi, proprietário, pedia à Câmara para ficar isento de lajear constantemente a sua testada em razão dos danos que lhe causava o trânsito, ou que lhe fosse permitido colocar frades de pedra junto ao passeio. De sua parte, a Câmara resolvia proibir o trânsito de carretas, carros e carroças por aquele e por outros becos da zona central. Mas seria impossível aplicar regra tão rígida. De modo que, em 1861, (abr./24), o que a câmara estabeleceu foi um sistema de “mão única”: ficava proibido aos veículos de rodagem descer o Beco do Rosário para irem à Praça do Paraíso, só lhes sendo permitido subirem.”4

Em anúncios do Anuário da Província de 1885 e 1888, os sobrados comerciais que ficavam à esquina do Beco do Rosário com a Praça XV atestam esta posição de importância na malha urbana:

As duas edificações podem ser vistas até na seguinte fotografia do início do século XX, provavelmente poucos anos antes de sua demolição:

Autor Desconhecido -
Autor Desconhecido – “Avenida Otávio Rocha” – 1º quartel do séc XX. Fototeca Sioma Breitman.

Com o crescimento e industrialização da cidade na segunda metade do século XIX, esse problema agravou-se. Era necessário criar uma via de conexão mais eficiente entre as indústrias no 4º Distrito e a importante área do porto. Ainda segundo Franco (1988),

“A era do automóvel e a crescente congestão das ruas centrais obrigaria à solução cirúrgica. Em seu relatório de 1925, o Intendente Otávio Rocha expunha o plano: ‘O alargamento da Rua 24 de Maio e a sua ligação com a São Rafael é outro importante problema que faz parte do nosso programa. Esta rua será ligada com Cristóvão Colombo e 24 de Maio, sendo esta alargada na face norte, entre as ruas Marechal Floriano e Dr. Flores. Aí deflexionando, vai bifurcar-se com São Rafael, ficando um largo de forma triangular, compreendido por este novo alinhamento, Rua Senhor dos Passos e face sul da Rua 24 de Maio.”‘5

Além desse problema, que seria efetivamente resolvido com a abertura da avenida Otávio Rocha no início da década de 1930, o Beco do Rosário seguiu o caminho de outros becos da antiga Porto Alegre, tornando-se um foco de criminalidade e, consequentemente, um espaço estigmatizado no coração da cidade. Conforme o Correio do Povo de 17/01/1926,

“A demolição do antigo Becco do Poço expulsou a gentalha ali habitante – que, afinal, devia encafuar-se em alguma parte. A mesma gentalha, entretanto, aprecia e prefere o centro da cidade: não as arterias principaes, – o que, então, seria o cumulo! – mas as transversaes, que são precisamente a caterva de beccos que infestam o coração da ‘urbs’.

Assim, e não existindo disposição municipal moralisadora alguma, o ‘pessoal’ afugentado procurou accomodar-se numa especie, assim, de succursal: o antigo Becco do Rosario. E com o inseparavel accrescimo: os tumultuarios ‘habitués’, que formam a fina flôr da capadoçagem porto-alegrense.

Releva notar que as viellas transversaes vão, todas, desembocar ou nascer, ou, ainda, encravar-se nas ruas principaes do centro, de movimento quotidiano forçado em todas as horas e de habitação familiar. Pois as desordens, os debóches, todas as incoveniencias revoltantes da ralé estão a atormentar pavorosamente os transeuntes e os moradores proximos do famigerado Becco do Rosario. A coisa tem proporções: desenvolve-se da rua Vigario José Ignacio á Senhor dos Passos, quasi todo o perimetro da má afamada e mal cheirosa rua 24 de Maio.

O sarilho é constante: diaria e nocturnamente. De permeio, quitandas asquerosas ou bodegas ignobeis a empestar a atmosphera. E, a coroar tudo, os ajuntamentos repulsivos, quadros de miseria e de revolta, os outros, as outras… Ora, a policia, se não póde eliminar aquillo, póde, ao menos, attenua-lo um pouco.

Este é o pedido, não muito exigente, de algumas familias das immediações e endereçado, por nosso intermedio, a quem de direito.”6

O jornal é claro em caracterizar o logradouro como um antro de desregramento e contravenção, relacionando-o inclusive com os moradores do Beco do Poço e deplorando “as transversaes, que são precisamente a caterva de beccos que infestam o coração da ‘urbs’”. Contudo, o Correio do Povo ainda informa, em edição de 11/05/1926, o endereço dos focos de criminalidade, clamando à polícia por providências:

Com a policia

Negociantes da rua 24 de Maio, antigo becco do Rosario, pedem-nos chamemos [sic] a attenção da policia para a vergonhosa quadrilha de vigaristas que, impune e vergonhosamente, opera nessa rua e Praça 15 de Novembro, sem ter quem a perturbe nem resalve os interesses dos negociantes ali estabelecidos. Accrescentam esses negociantes que nos predios 24 e 52 da citada rua está estabelecido o quartel-general desses vigaristas.7

Detalhe da Planta Cadastral de 1893, mostrando os imóveis de números mencionados na notícia. Acervo do AHMMV.
Detalhe da Planta Cadastral de 1893, mostrando os imóveis de números mencionados na notícia. Acervo do AHMMV.

A Planta Cadastral de 1893 permite localizar os endereços indicados na nota do Correio do Povo, que podem ser comparados com os seguintes registros fotográficos, encontrados na Coleção Eva Schmidt (Fototeca Sioma Breitman):

“Rua 24 de Maio nr. 30”, Coleção Eva Schmidt, Fototeca Sioma Breitman.

A foto acima é consistente com a Planta Cadastral de 1893, mostrando uma ocupação por moradias térreas bastante modestas e o que parece ser, em primeiro plano, casarões ocupados por mais de uma família. Ao fundo, pode-se identificar o número 52 mencionado na nota jornalística como uma das moradias modestas mais próximas da esquina com a Rua Dr. Flores.

A presença de casas térreas, as recorrentes “casinhas de aluguel” nos registros dos becos de Porto Alegre, é sugerida pela nota de compra de imóveis pela Intendência, pouco antes da abertura da via:

“Compra de predios – Sabbado ultimo, pela Intendencia, foram comprados os predios ns. 2-B da rua 24 de Maio, 82 e 84 da rua Marechal Floriano, de propriedade de d. Maria Joaquina de Barcellos, por 133: 760$; os predios ns. 32-E, 32-F, 36, 56 e 56-A, da rua 24 de Maio de propriedade do sr. Luiz Rothfuchs por 307:435$, destinados à abertura da rua S. Raphael.”8

A quantidade de imóveis pertencentes a um único proprietário conduz à conclusão de que se tratava possivelmente de casinhas de aluguel, o que é corroborado pelos tamanhos das testadas encontradas nestas numerações na Planta Cadastral de 1983.

A alternância de casas térreas e sobrados também pode ser observada em outra fotografia da mesma coleção:

O Beco do Rosário na altura do nr. 25. Coleção Eva Schmidt, Fototeca Sioma Breitman.
O Beco do Rosário na altura do nr. 25. Coleção Eva Schmidt, Fototeca Sioma Breitman.

Outra fotografia, constante no acervo fotográfico do Museu Hipólito José da Costa, também evidencia essa alternância, mostrando casas térreas em frente a casarões de aspecto mais abastado:

Beco do Rosário, década de 1920. Fototeca Museu Hipólito da Costa.
Beco do Rosário, década de 1920. Fototeca Museu Hipólito da Costa.

Outra fotos da mesma coleção obtidas na Fototeca Sioma Breitman mostram edificações mais importantes, algumas até com porões elevados, o que pode indicar serem de época posterior ao período colonial:

O Beco do Rosário na altura do nr. 33. Coleção Eva Schmidt, Fototeca Sioma Breitman.
O Beco do Rosário na altura do nr. 33. Coleção Eva Schmidt, Fototeca Sioma Breitman.

Spalding (1967) menciona o Beco do Rosário em passagem sobre a modernização de Porto Alegre iniciada pelo Intendente Otávio Rocha, caracterizando-o como um espaço insalubre da cidade:

“A obra citadina de Otávio Rocha […] transformou vielas imundas e escuros becos, e abriu amplas portas de largo acesso à cidade. São de sua administração […] a abertura da Avenida São Rafael (depois dividida em duas: Av. Otávio Rocha e Av. Alberto Bins), compreendendo o antigo “beco” 24 de Maio e Rua São Rafael, o primeiro estreitíssimo e verdadeiro antro de vícios em quase toda a sua extensão da Praça 15 de Novembro à Rua Senhor dos Passos, onde terminava defronte da Igreja Protestante. Do resultante da curva ligando a antiga 24 de Maio à São Rafael, ficou uma praça que, mais tarde, recebeu o nome do imortal remodelador – a Praça Otávio Rocha, como terminar da Avenida de mesmo nome.”9

Nisso, é corroborado por Monteiro (1995), que da mesma forma afirma a necessidade premente de ligação da área portuária e centro da cidade com o então distrito industrial através do alargamento deste beco:

“O prolongamento da rua São Raphael encontrando-se com a rua 24 de Maio torna-se, também, uma das prioridades da administração de Otávio Rocha. Representava a demolição de antigo ‘beco’, de um conjunto de cortiços e habitações de madeira [?] consideradas ameaças à higiene e ao aspecto estético do centro da cidade. Outra razão importante era que esta rua ligaria o centro aos arrabaldes da zona norte, ocupados por fábricas e por um contingente crescente de operários em geral, permitindo melhor tráfego de bondes e auto-ônibus.”10

O jornal “A Federação” de 01/01/1927 traz registros das obras de abertura do Beco do Rosário, o que não deixa de mostrar também partes da antigo tecido urbano que dava lugar ao novo:

“Demolições de predios da rua 24 de Maio” – A Federação, 01/01/1927.
Demolição Beco do Rosário. Fototeca do Museu Hipólito da Costa.
Demolição Beco do Rosário. Fototeca do Museu Hipólito da Costa.

 

Referências:

1CORUJA, Antônio Álvares Pereira. Antigualhas; reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Companhia União de Seguros Gerais, 1983. p. 105.

2 PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre. Edição organizada por Deusino Varela para as comemorações do bicentenário da cidade e officialisada pela Prefeitura Municipal. Porto Alegre, 1940. p.16.

3MARX, Murillo. Cidade no Brasil em que termos? São Paulo: Studio Nobel, 1999. p. 110.

4FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1988. pp. 301-302.

5FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1988. pp. 301-302.

6Correio do Povo, 17/01/1926. Acervo da hemeroteca do Museu de Comunicação de Porto Alegre Social Hipólito José da Costa.

7Correio do Povo, 11/05/1926. Acervo da hemeroteca do Museu de Comunicação de Porto Alegre Social Hipólito José da Costa.

8Correio do Povo, 29/06/1926. Acervo da hemeroteca do Museu de Comunicação de Porto Alegre Social Hipólito José da Costa.

9SPALDING, Walter. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Sulina, 1967. p. 167.

10MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade: a construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 75.

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