Onde moravam os pobres das cidades brasileiras e de Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX? Muito embora Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e outras tantas capitais tenham testemunhados grandes obras de modernização nesta época, e com grandes remoções de moradores pobres do centro para as periferias, morar no centro da cidade ou nos seus arredores ainda era muito importante. Afinal, é onde está a maior oferta de emprego, e para onde o deslocamento poderia ser feito a pé, evitando despesas nas incipientes redes de transporte público.
Um terreno, um correr de casas
Como uma das poucas formas de habitar a cidade que restava aos mais pobres, a palavra avenida parece trazer uma ambiguidade na imprensa e literatura da época: ao mesmo tempo em que era usada significando uma via larga e retilínea, equipada com moderna iluminação elétrica e comércio elegante, também designava uma habitação coletiva pobre e precária ao longo de um pátio. Pode parecer confuso encontrar na imprensa a notícia de um crime numa avenida localizada à rua ou beco tal, mas basta pensar que trata-se de um terreno daquela rua em que se abriu uma rua semi-pública para atender uma faixa de pequenas casas.
Por vezes, a própria avenida ou cortiço em si era chamada de beco.
Se os antigos sobrados em ruínas eram sublocados para serem aproveitados como moradia coletivas[1], terrenos vazios no centro da cidade ou seus arredores podiam ser usados para a construção de um correr de casas. Esta conformação consistia em erguer ao longo do lote uma série de pequenos cubículos, todos dando para um pátio comum, onde se localizavam um tanque e latrina coletivos. A esse tipo de construção era dado o nome de avenida ou avenida operária, por serem destinadas às classes trabalhadoras. Não raro, eram produto da iniciativa do proprietário do terreno, que assim auferia bom lucro sobre o valor do solo urbanizado, cobrando aluguéis nada baratos a seus locatários.
Tanto os casarões decrépitos que eram sublocados quanto as avenidas eram muitas vezes descritos como cortiços. Apesar da diferença morfológica entre os dois tipos, Sandra Pesavento ressalta que a característica determinante para levar esse nome era ser uma habitação coletiva que abrigasse muitas pessoas pobres num mesmo espaço precário:
“A identificação do cortiço como uma habitação indica tratar-se de um espaço a ser alugado onde há um lance ou corre de casinhas de aluguel. Assim, cortiço refere-se tanto a uma moradia popular quanto ao espaço construído. Cortiço supõe a existência de uma habitação coletiva pertencente a um proprietário privado. […] O cortiço, mais do que um imóvel, é uma aglomeração de habitações num mesmo espaço”[2].
No Rio de Janeiro, Lima Barreto também descreve o tipo da avenida em seu romance Clara dos Anjos:
“Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isso muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, ‘correres’ de casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chamamos ‘avenida’.”[3]
Em Porto Alegre há indícios nas plantas e notícias de jornal da época da sua modernização, sobretudo nas desapropriações de imóveis com mesmos números, porém seguidos de letras. Esta subdivisão do espaço dentro da cidade pode indicar que se tratava de uma avenida, e é apontada por Sandra Pesavento:
“Nota-se que os jornais, quando identificam o endereço onde a tragédia, o crime ou a contravenção se deu, indicam não apenas o número do imóvel, mas também a letra que o acompanha, como por exemplo: 66F, 66J, 4B, etc. […] o que nos permite concluir que se trata de um lance ou correr de casas, indicando a sequencia de casebres que formam um cortiço e/ou que se abrigam no interior de um beco.”[4]
Por sua vez, Irene Santos traz um relato da vida em uma avenida na rua Múcio Teixeira, no Areal da Baroneza[5] [colocar link]:
“[…] dona Elvira era uma exímia comerciante. Ao perceber que poderia aumentar suas rendas a partir do terreno onde morava, decidiu construir naquela área pequenas moradias e alugar. Investiu no comprimento e largura da imensa área onde já havia construído sua casa de madeira em estilo italiano. Sua clientela era composta de operários, cozinheiras, lavadeiras e pessoas que trabalhavam no comércio.
Visitante assídua da residência da avó, sua neta, também chamada Elvira, descreve esse local marcante em sua infância e adolescência: ‘A entrada ficava à esquerda, de frente para a casa da minha avó, mas independente da mesma. Lembro das pessoas passando pelo pátio, para logo a seguir entrar numa rua calçada com paralelepípedos ladeada de pequeníssimas casas de madeiras. Na época, essas casas eram chamadas de peças, porque normalmente eram compostas de um quarto e sala que também servia de cozinha. Havia pia, tanque, chuveiro e banheiro comuns. Esta rua era cheia de varais para secar roupas e lá viviam pessoas sozinhas e famílias com quatro a cinco membros’.”[6]
A autora ainda destaca a coesão entre as moradoras das avenidas:
“Mas uma das características marcantes desses locais era a solidariedade existente entre os moradores. ‘A gente se ajudava mutuamente, principalmente as mulheres. Cuidávamos dos lavados enquanto uma ou outra lavadeira saía para fazer as entregas ou busca de roupas, controlávamos as crianças para que não ficassem soltas na rua e, por vezes, cedíamos alimentos para aquelas famílias que se apertavam por falta de dinheiro, principalmente no final do mês’, lembra uma antiga moradora.”[7]
Avenidas e etnicidade
Por outro lado, Irene Santos destaca a possível ligação das avenidas com as tradições construtivas africanas, em especial a forma dos compound nigerianos:
“Há quem encontre semelhanças das avenidas porto-alegrenses com as habitações africanas, em especia das da Nigéria, denominadas compound. A arquiteta Luana Paré de Oliveira desmonta essa identidade. Os compounds nigerianos, segundo a arquiteta, lembra as áreas encontradas nos quilombos contemporâneos, ou seja vários parentes, com suas famílias, tendo suas casas no mesmo terreno. ‘Só que são casas de boa qualidade e grandes. Quando estão todos sob o mesmo teto, é uma casa enorme em que são compartilhadas as cozinhas – algumas vezes tem mais de uma – e os espaços comuns, mas cada núcleo familiar tem seus aposentos. De bom tamanho.”[8]
Contudo, Sandra Pesavento aponta para uma estigmatização das habitações populares como as avenidas através da utilização do termo zungu:
“Neste último caso [zungu] há uma identificação étnica dos seus ocupantes. Os zungus eram os batuques, as cerimônias religiosas dos escravizados em que haviam danças e cantos ao ritmo de instrumentos de percussão. No sul do Brasil, a repressão das práticas religiosas dos negros pela lei provincial nr. 405, de 28 de dezembro de 1857, havia condenado os zungus assimilando-os às ‘reuniões de escravizados’. Assim, um duplo estigma associava a cor à condição social e à habitação. Também cabe notar que zungu tornou-se sinônimo de ‘conflito’, ‘briga’, ‘confusão’, ‘desordem’.” (p. 103)
Partindo do exemplo do Rio, Sidney Chalhoub considera que esta estigmatização das habitações coletivas nas cidades brasileiras estava estreitamente ligada à luta dos negros pela independência e liberdade, que eram muito favorecidas pelo relativo anonimato oferecido pelo meio urbano:
“Neste contexto, a importância das habitações coletivas nas últimas décadas da escravidão começa a se evidenciar: para escravos, assim como para libertos e negros livres em geral, as alternativas viáveis de moradia na Corte, no período, eram cada vez mais os cortiços e as casas de cômodos. São vários os exemplos de escravos que moravam em cortiços, ou que tinham suas amásias morando em cortiços; além disso, encontram-se famílias de ex-escravos que conseguiam se reunir e passar a morar juntos em habitações coletivas após a liberdade. Com frequência, era nestas habitações que os escravos iam encontrar auxílios e solidariedades diversas para realizar o sonho de comprar a alforria a seus senhores; e, é claro, misturar-se à população variada de um cortiço podia ser um ótimo esconderijo, casou houvesse a opção pela fuga. Em suma, o que estou querendo sugerir é que o tempo dos cortiços no Rio foi também o tempo da intensificação das lutas dos negros pela liberdade, e isto provavelmente teve a ver com a histeria do poder público contra tais habitações e seus moradores.”[9] (p. 29)
Ou seja, como é até hoje, há uma ligação estreita entre racismo e estigmatização de espaços habitados por pobres e negros nas cidades brasileiras.
Cada vez mais longe
Aos poucos, a especulação imobiliária e a gentrificação da área central e seus arredores foram fazendo com que o tipo avenida fosse desaparecendo. Como outras formas de habitação popular, as avenidas eram tidas como indesejáveis por serem caracterizadas pela ausência ou precariedade de saneamento, gerando reclamações entre a vizinhança, ou pelos comportamentos percebidos como condenáveis entre seus moradores, como as brigas, arruaças e prostituição.
Se a imprensa das camadas dominantes trabalhava no sentido de criar um consenso de que esse tipo de moradia não poderia existir nas proximidades da cidade moderna, as autoridades públicas colocavam os impostos a serviço do desaparecimento das avenidas.
“Segundo as denúncias dos jornais, os aluguéis subiam a ponto de tornarem-se insustentáveis para os pobres. Periódicos populares como A Gazetinha diziam que a alta dos aluguéis não se devia unicamente à cupidez dos proprietários dos imóveis, mais principalmente à política da Intendência Municipal[10]. A acusação se baseava no fato de que esta aumentava o imposto sobre os imóveis, incitando os proprietários a superlotar as casas de aluguel ao mesmo tempo em que aumentavam o valor dos aluguéis. A situação mostrava-se dramática, com a expulsão de moradores que não podiam mais pagar o aluguel.”[11]
O historiador Charles Monteiro também aponta para essa política em sua pesquisa:
“Pode-se notar, analisando a nova lei tributária municipal […] que os cortiços, porões e estalagens foram sobretaxados bem acima das demais habitações, quando localizados no centro comercial, financeiro e administrativo da cidade, correspondente à 1ª zona […]. Além da necessidade de equilibrar o orçamento municipal e investir em novas obras, percebe-se uma nítida intenção da administração municipal de reorganizar a ocupação do espaço urbano central através do mecanismo tributário, privilegiando determinados grupos sociais e seguindo uma orientação ideológica [grifo da pesquisadora].”[12]
Em suma, as avenidas aparecem nas cidades brasileiras da virada do século XIX para o XX não apenas como habitações de pobres, mal vistas e indesejáveis nas cidades, mas também como fonte de lucro para proprietários, ricos ou remediados, que assim faziam render o valor do solo urbanizado. Se surgem pela especulação imobiliária, também são empurradas para cada vez mais longe dos centros urbanos por legislações tributárias formuladas para isto, criando um ciclo de penalização sempre maior dos mais pobres através do custo de vida.
Referências:
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. [1922] Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro. E-book disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000048.pdf. p. 38.
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade: a construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cortiços, porões, casebres… où habitent les pauvres? (sud du Brésil, fin du XIXe siècle). In: DEPAULE, Jean-Charles (org.). Les mots de la stigmatisation urbaine. Paris: Éditions UNESCO; Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 2006.
SANTOS, Irene (coord. ed.). Colonos e quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre. Porto Alegre: [s.n.], 2010.
[1] Estas eram conhecidas como casas de cômodos, em que cada cômodo era alugado a uma ou mais pessoas. Em Recordações do escrivão Isaías Caminha (p. 88), Lima Barreto descreve em detalhes a vida em uma dessas casas: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000157.pdf
[2] PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cortiços, porões, casebres… où habitent les pauvres? (sud du Brésil, fin du XIXe siècle). In: DEPAULE, Jean-Charles (org.). Les mots de la stigmatisation urbaine. Paris: Éditions UNESCO; Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 2006. P. 114. Tradução livre do francês.
[3] BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. [1922] Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do Livro. E-book disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000048.pdf. P. 38.
[4] PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cortiços, porões, casebres… où habitent les pauvres? (sud du Brésil, fin du XIXe siècle). In: DEPAULE, Jean-Charles (org.). Les mots de la stigmatisation urbaine. Paris: Éditions UNESCO; Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 2006. P. 114. Tradução livre do francês.
[5] Atual área da Cidade Baixa.
[6] SANTOS, Irene (coord. ed.). Colonos e quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre. Porto Alegre: [s.n.], 2010. P. 42-43.
[7] SANTOS, Irene (coord. ed.). Colonos e quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre. Porto Alegre: [s.n.], 2010.
[8] SANTOS, Irene (coord. ed.). Colonos e quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de Porto Alegre. Porto Alegre: [s.n.], 2010. P. 42-43.
[9] CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. P. 29.
[10] Como era então chamada a Prefeitura Municipal.
[11] PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cortiços, porões, casebres… où habitent les pauvres? (sud du Brésil, fin du XIXe siècle). In: DEPAULE, Jean-Charles (org.). Les mots de la stigmatisation urbaine. Paris: Éditions UNESCO; Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 2006. P. 115. Tradução livre do francês.
[12] MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade: a construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. P. 62-63.
Suas pesquisas são fantásticas! Estou encantada com seu trabalho!
Sou produtora do Museu Julio de Castilhos e seria uma honra conhecê-la, quiça montarmos algum projeto juntas no museu, pois todo seu processo criativo e obra merecem muito ser exibidos e conhecidos.
Parabéns.