Os projetos para o viaduto Otávio Rocha 

Como visto anteriormente, a obra prevista por João Moreira Maciel para a rua General Paranhos no seu Plano de Melhoramentos para a cidade  de 1914 ganhava proporções muito maiores quando do início de sua implementação, na administração de Otávio Rocha (1924-1928). O que inicialmente seria apenas um alargamento e embelezamento daquela via havia se tornado uma monumental obra de integração urbana, envolvendo múltiplas desapropriações de imóveis e um esforço técnico e político inaudito para o rompimento do grande maciço granítico que compõe o espigão sobre o qual se situa o centro histórico. Afinal, tratava-se de rebaixar grandemente as declividades do leito da futura avenida Borges de Medeiros para permitir o trânsito fácil de pessoas, bondes, ônibus, caminhões e carros.

“O bondinho que subia a rua de Bragança [Marechel Floriano], com o burrinho auxiliar, que ao chegar à esquina da Casa Masson, auxiliava aos outros”. A ilustração mostra a dificuldade de vencer as fortes ladeiras do centro histórico.  MAZERON, Gaston Hasslocher. Reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Selbach, 1974 [?].
Este grande desaterro, que deixou um desnível de cerca de treze metros entre o nível da rua Duque de Caxias e o da avenida Borges de Medeiros, requereu o projeto de um viaduto, que, segundo George Moraes, “foi o primeiro viaduto construído em Porto Alegre e assim se manteve por mais de 30 anos” [1]. Segundo Taísa Festugato,

Após serem iniciadas as escavações, o projeto [da avenida Borges de Medeiros] foi aperfeiçoado, passando a largura para 30 metros e alterando o perfil na faixa entre a rua Duque de Caxias e a praça Montevidéu, a fim de melhorar a perspectiva e a visualização do Viaduto, que passa a ser um elemento de destaque da intervenção[2].

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“Viaducto à rua Duque de Caxias. Corte da rua General Paranhos”. Projeto do viaduto publicado na revista A Máscara, de 6/2/1925, da hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. Vê-se um corte da rua General Paranhos com os elevadores previstos pela Comissão de Obras Novas de cada lado da via. 

 

Com esse peso viasual na paisagem urbana, a intendência abre um concurso de projetos para o viaduto, sendo que dois deles são feitos dentro da própria Comissão de Obras Novas, criada em 1926 por Otávio Rocha para implementar as melhorias urbanas do Plano Maciel. Ainda segundo Festugato,

Dois estudos se desenvolveram dentro da Comissão Especial de Obras Novas, sendo o primeiro de autoria do engenheiro Duilio Bernardi [1888-?], que integrava a comissão juntamente com Adolpho Stern e Acelyno de Carvalho. O segundo foi elaborado por Christiano Gelbert [1899-1985], que trabalhava como desenhista chefe da Seção de Desenhos da Comissão Especial de Obras Novas. O terceiro estudo foi do engenheiro Manoel Itaqui [1876-1945], que […] era amigo do prefeito Otávio Rocha e em um ‘encontro casual com o intendente municipal e munido com um lápis e um pedaço de papel de embrulho, rabiscou o projeto na hora’[3]. O projeto escolhido, ainda na administração de Otávio Rocha, foi o de Manoel Itaqui, que posteriormente foi contratado para fiscalizar as obras que iniciaram na administração Alberto Bins[4].

"Avenida Borges de Medeiros. Viaducto à rua Duque de Caxias". Revista A Mascara, Ano VII, nº VII, Junho de 1925, p. 77. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.
Provável perspectiva do projeto de Duilio Bernardi, com suas escadrias e paredes junto à avenida. “Avenida Borges de Medeiros. Viaducto à rua Duque de Caxias”. Revista A Mascara, Ano VII, nº VII, Junho de 1925, p. 77. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.
“Os grandes melhoramentos de Porto Alegre. Projeto do viaducto da Rua Duque de Caxias sobre a Avenida Borges de Medeiros”. Maquete de projeto, provavelmente década de 1920. Acervo desconhecido.

Por sua vez, Moraes detalha o episódio do projeto rascunhado casualmente por Itaqui no relato do bisneto do engenheiro-arquiteto:

[…] mesmo sem ter participado com projeto no concurso, em um encontro casual com o Intendente Municipal[5] [Otávio Rocha], munido com um lápis e um pedaço de papel de embrulho, o Dr. Manoel Itaqui rabiscou outro projeto na hora e mostrou-o ao Dr. Otávio Rocha, Intendente Municipal na época e seu amigo pessoal. O Dr. Otávio Rocha teria aprovado a idéia no ato e hoje, o viaduto construído à avenida Borges de Medeiros é aquele com a maioria dos detalhes que Itaqui havia desenhado numa conversa informal com um amigo, em plena rua[6].

“Papel de embrulho, no qual o engenheiro Manoel Itaqui esboçou sua ideia de viaduto para o intendente Otávio Rocha. Fonte: Acervo do arquiteto George Moraes de Moraes – reprodução do acervo pessoal do Dr. Eduardo Luiz Vianna Raupp – Rio de Janeiro”. In: VOLPATTO, 2022, p. 50.

Se a escolha do projeto de Itaqui se deu dessa forma inusitada ou não, não temos como saber ao certo. Porém, as qualidades do seu projeto para o viaduto são inquestionáveis. Manoel Itaqui apresenta soluções muito superiores àquelas propostas por Bernardi e Gelbert. Enquanto os dois primeiros previam grandes lances de escadas para o percurso da avenida Borges de Medeiros para a rua Duque de Caxias, Itaqui criava rampas escalonadas, que propiciam uma subida bem menos penosa entre os dois níveis. Além disso, os projetos de Bernardi e Gelbert criavam paredões ao longo da avenida, enquanto que Itaqui propunha planos de galerias com espaços para lojas sob as rampas, e arcadas que se projetam sobre o passeio, protegendo o percurso sob o viaduto. As galerias com espaço para lojas permitiam a presença de comércio e serviços, favorecendo a movimentação de pessoas e evitando que as calçadas da avenida se tornassem espaços vazios e perigosos. Esteticamente, as arcadas que se projetam sobre o passeio sob o viaduto são visualmente mais interessantes em seu jogo de planos diferentes, com suas luzes e sombras, do que simples paredes.

 Segundo Lucas Volpatto,

[…] ao analisarmos os três partidos, Itaqui trazia inovações. O engenheiro propunha rampas de acesso ao invés de escadarias contínuas, e a proposta trazia nítida integração da obra viária com a arquitetura imaginada para a cidade. Apresentava o recurso de galerias, que acabavam por exercer importante função de proteção para o pedestre em nível da avenida Borges de Medeiros, e, ao mesmo tempo, as rampas estabeleceriam um agradável percurso, com declive suave, melhorando o acesso à importante rua Duque de Caxias[7].

O autor ainda aponta para as vantagens financeiras do projeto de Itaqui: a solução das rampas facilitou o nivelamento da ponte do viaduto com a altura da rua Duque de Caxias[8], o que dispensou a implementação dos elevadores previstos pela Comissão de Obras Novas em 1926.

Taísa Festugato analisa o projeto de Duílio Bernardi da seguinte forma:

 

O trabalho de Duilio Bernardi apresenta a mesma vista da escadaria, utilizando-se de portas e nichos de arco, porém com menos elementos e tratando a escadaria como um plano limpo e mais contínuo, com base rusticada e balaustrada no topo. A proposta de Bernardi é mais ‘moderna’ e unitária, evitando os diversos episódios que Gelbert utiliza em sua elevação. Cabe assinalar que os dois desenhos não mostram o projeto do Viaduto, nem de sua parte inferior junto à Avenida[9].

“A remodelação da cidade. Perspectiva do projectado viaducto á Avenida Borges de Medeiros”. Revista do Municipio-RS, 1927, Ed0006, p.08. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.
“A remodelação da cidade. Um dos projetos da escadaria de accesso á rua Duque de Caxias, na Avenida Borges de Medeiros. Revista do Municipio-RS, 1927, Ed0006, p.09. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.

Enquanto que o que se conhece dos projetos de Bernardi e Gelbert apresenta uma linguagem arquitetônica francamente historicista e eclética, o projeto de Manoel Itaqui ensaia uma transição para um estilo mais moderno. George Moraes ressalta como Manoel Itaqui modernizou a linguagem arquitetônica do projeto ao abandonar o Art Nouveau típico de seus numerosos projetos anteriores para adotar uma linha mais despojada, que o autor caracteriza como Art Déco:

O projeto do viaduto Otávio Rocha taz em sua decoração a influência do Art Déco com a utilização de elementos geométricos e abandono total da excessiva decoração do ‘Art Nouveau muito utilizado por Manoel Itaqui até o projeto da Confeitaria Rocco[10].

Obras de construção do viaduto Otávio Rocha, década de 1930. Pode-se observar os elementos da linguagem arquitetônica clássica nas arcadas, cornijas e balaustradas da passagem. Também os capitéis estilizados e chaves de arco são característicos dessa linguagem. Por outro lado, notar os detalhes decorativos geométricos junto aos capitéis dos pilares. Foto 4890f da Fototeca Sioma Breitman. Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo. 

Contudo, o viaduto ainda apresenta elementos clássicos muito característicos, ainda que bastante despojados: arcos plenos com chaves de arco, capitéis estilizados, cornijas, balaústres, pedimentos, etc. Os detalhes decorativos também são de inspiração clássica, mas bastante geometrizados. Ou seja, trata-se de um projeto francamente classicista em seus principais elementos, porém transitando sob a influência geometrizante do Art Déco para uma linguagem mais moderna. Nesse sentido, Volpatto afirma que

 

[…] o viaduto de Manoel Itaqui não segue qualquer princípio do movimento moderno. Embora existissem esforços na busca de uma modernidade para a metrópole, a arquitetura produzida na cidade até o final da década de 1920 ainda transitava no ecletismo. Manoel Itaqui, que em toda sua produção arquitetônica projetou edifícios de arquitetura eclética, trazia essa tendência para o viaduto, embora possamos observar detalhes e ornamentos que evidenciavam alguma transição estilística, pois se observa no viaduto certa geometrização de formas; mesmo que haja a predominância dos elementos clássicos como cornijas, balaustradas e elementos escultóricos, esses elementos geométricos seriam como um pré-anúncio do art déco tão recorrente na década de 1940[11].

O projeto de Manoel Itaqui em perspectiva axonométrica, provavelmente 1927. “A remodelação da cidade. Perspectiva da futura Avenida Borges de Medeiros, segundo um dos projectos”. Revista do Municipio-RS, 1928, Ed00010, p. 32. Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. 

 

Nesse sentido, é interessante observar as edificações imaginadas por Itaqui no entorno do então futuro viaduto, neste desenho de 1927. Embora já pensadas em alturas maiores do que a maioria das edificações da cidade naquela época, mas ainda com apenas 3 a 5 andares, o estilo eclético dos prédios revela a idéia do que era moderno: prédios certamente munidos de boas instalações sanitárias, iluminação e ventilação naturais, mas com fachadas decoradas com elementos da arquitetura clássica e barroca.

Mesmo sendo um projeto arquitetônico de estilo eclético ou historicista, o viaduto projetado por Itaqui transcendeu o seu momento histórico na medida em que lançou as bases para a paisagem da futura Porto Alegre, prevendo uma avenida Borges de Medeiros ladeada por edifícios altos, e complementando a demanda principal da intervenção, que foi a integração urbana. Marcada pela imagem do viaduto, a paisagem de Porto Alegre se abria para o futuro com uma ligação ampla entre o porto, ao norte, e a zona sul, dinamizando seus fluxos de comércio e transporte na medida do seu crescimento.

 

Bibliografia:

FESTUGATO, Taísa. A arquitetura de Christiano de La Paix Gelbert em Porto Alegre (1925-1953). Dissertação de mestrado, 180 p. Programa de Pesquisa e Pós-gradução em Arquitetura, UFRGS. Porto Alegre, 2012.

MORAES, George Augusto Moraes de. A contribuição de Manoel Itaqui para a arquitetura gaúcha. Dissertação de mestrado. PPGARQ/UFRGS. Porto Alegre, 2003.

VOLPATTO, Lucas Bernardes. Viaduto Otávio Rocha: ícone da Porto Alegre moderna. Porto Alegre: Concórdia, 2022.

Referências:

[1] MORAES, 2003, p. 106

[2] FESTUGATO, 2012, p. 39.

[3]MORAES, 2003, p. 109.

[4] FESTUGATO, 2012, p. 40.

[5] Como se chamava o cargo de prefeito à época.

[6] MORAES, 2003, p. 109.

[7] VOLPATTO, 2022, p. 50.

[8] VOLPATTO, 2022, p. 53.

[9] FESTUGATO, 2012, p. 41.

[10] MORAES, 2003, p. 116.

[11] VOLPATTO, 2022, p. 78.

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