Se a fotografia revolucionou a nossa relação com as imagens a partir da primeira metade do século XIX, a sua conjunção com a aviação nas primeiras décadas do século XX nos fez ver a cidade de uma forma que antes poderia ser só imaginada ou desenhada. É claro que as fotografias tiradas do alto das torres da Igreja Matriz e da Igreja das Dores já eram feitas nos primeiros anos no século XX, mas não se comparam com as imagens que surgiam à medida em que as lentes subiam nas asas dos primeiros aviões.
Em Porto Alegre, o entusiasmo pelas fotografias aéreas não foi diferente, e assim testemunham as fotografias da cidade a partir do céu documentando a sua transformação através das décadas. Contudo, foram encontradas até aqui relativamente poucas feitas ainda na década de 1920, e elas mostram uma cidade de edificações baixas a ocupar a península que avança nas águas do Guaíba ainda sem os aterros que seriam feitos na enseada do Menino Deus, ao sul.
As primeiras décadas do século XX foram marcadas em Porto Alegre, assim como em tantas outras capitais brasileiras por uma demanda intensa de modernização urbana. A cidade estava e seus problemas eram intensamente debatidos, e havia grande interesse por parte das autoridades tanto municipais como estaduais em mostrar esforços no sentido de promover melhorias urbanas. Assim, As páginas dos jornais e revistas ilustradas traziam, frequentemente, imagens de antigos becos que eram demolidos para dar lugar a belas e largas avenidas, instalação de novas luminárias urbanas, encanamentos, obras de ajardinamento e tantas outras que, em especial na década de 1920, mudaram radicalmente muitos aspectos da paisagem porto-alegrense.
Encontradas na revista A Máscara[1] e Revista do Município[2], os originais destas imagens raras infelizmente podem ter se perdido no tempo, e seus autores nem sempre são conhecidos.
A mais antiga fotografia encontrada foi publicada em 1925 e traz uma vista aérea da ponta da Cadeia, onde se situava a Casa de Correção. Também é possível ver também alguns trapiches e atracadouros embaixo e à direita. O tecido urbano é composto de edificações baixas, com longos quintais que davam aos interiores de quadra um aspecto pitoresco e arborizado, típico do traçado urbano de origem colonial portuguesa:
Já edição número 1 da Revista do Município, de 1927, traz na sua capa uma belíssima fotografia aéra da mesma área, porém tirada de outro ângulo. Pode-se ver que os contornos da cidade ao sul (à direita na foto) ainda não haviam sido modificados pelos aterros em que hoje situa-se o Centro Administrativo. Outro aspecto importante a chamar atenção é o tecido urbano ainda formado por edificações baixas, de um a três andares, mas que nos anos seguintes já daria seus primeiros passos para a verticalização, ou seja, a ocupação dos lotes por edificações de maior altura. Na margem norte (à esquerda na foto) o porto já aparece completamente retificado, obra feita pelo Estado e iniciada ainda na década de 1910, e que havia se completado em 1921.
Dois anos depois, em 1929, a mesma publicação traz na capa uma vista aérea da Praça da Matriz e arredores, mostrando ainda a antiga Igreja Matriz e a Capela do Divino, bem como os bancos do auditório Araújo Vianna (margem inferior). Naquele mesmo ano já se falava na demolição da antiga Igreja Matriz, construída ainda no século XVIII, assim como da Capela do Divino, o que torna esta foto provavelmente uma das últimas a trazer estes dois monumentos inseridos no tecido urbano. Vigia a administração municipal de Alberto Bins, herdeiro e continuador das grandes obras iniciadas pelo “Grande Remodelador”, como Otávio Rocha ficou conhecido. O auditório Araújo Vianna, com sua concha acústica, perímetro de pergolado e bancos de concreto, seria substituído mais tarde pela Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Nota-se, no canto inferior direito, uma parte da asa do avião de onde foi feita esta imagem.
Finalmente, a Revista do Município traz na sua edição de número 20, de 1929, uma belíssima fotografia do Campo da Redenção, também conhecido hoje o Parque Farroupilha. Em primeiro plano, vê-se as duas quadras que dariam origem ao campus central da UFRGS, já com os prédios do Instituto de Eletrotécnica, Escola Técnica Parobé, Escola de Medicina, Instituto de Química, a Faculdade de Direito e o Colégio Júlio de Castilhos. Pelo alinhamento da vegetação, com canteiros ordenados ao longo das grandes avenidas que definem o espaço do parque, pode-se notar o esforço de ordenar e embelezar o espaço urbano. Ao fundo, o Colégio Militar destaca-se, marcando para além dele uma ocupação ainda rarefeita do que hoje é o bairro Santana.
Estas são, portanto, algumas das imagens aéreas da cidade na década de 1920 que foram encontradas até o momento. Nas décadas seguintes, esse tipo de documento parece ser mais numeroso, o que evidencia possivelmente uma maior facilidade de obtenção destas imagens, bem como um interesse persistente nas vistas aéreas da cidade.
[1] Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
[2] Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Ler o livro de Ana Luiza Koehler, “Beco do Rosário”, foi uma bela experiência. Suas ilustrações excelentes e a narrativa sensível levam o leitor mergulhar naquele estrato soterrado da história da cidade, revivendo-o em si mesmo. Também os videos, com o material existente apresentado de modo claro, são ricos em informações. Enfim, achei extraordinária a sua capacidade de “ler” no palimpsesto da cidade e transmitir com verdade (vale dizer, com vida) o aí descoberto. Parabéns!