Torreão do Memorial do RS. Ana Luiza Koehler, lápis e bico de pena sobre papel, 2020.

Relógios desajustados na cidade

O tempo na cidade moderna é, naturalmente, o tempo na modernidade: medido com precisão, regulando a vida urbana e o trabalho, ele precisa estar por tudo, onipresente, na forma do seu “olho”, o relógio, que observa condenando o desperdício de tempo, a “vadiagem”, o flanar. Para andar na cidade moderna tem-se que andar à americana, ou seja, com pressa. Afinal, tudo isso é sinal de um novo ritmo de vida, acelerado graças aos automóveis, aos bondes, aos telégrafos, à imprensa.

Porém, na Porto Alegre ainda meio provinciana, os relógios são ligeiramente desajustados como constatam os jornalistas que a percorrem: o deslocamento no espaço informa tempos diferentes.

“Quasi uma conflagração horaria…[1]

Seis relogios, dos pontos urbanos mais concorridos, em desaccordo

Pequena reportagem, num giro citadino

– Que é isso, moço?

– Nada, que eu saiba. De mim, estou apenas vendo a hora…

– Onde?

– Nesse relogio ahi!

– Está V. bem arrumado… Não perca tempo nisso!

Prologo natural

O dialogo era-nos proporcionado por um cidadão de oculos, traço macambuzio, mas espirituoso – qual se vê… – ali, á beira da estatua do Grande Chanceller, no Largo dos Correios e Telegraphos. Fixavamos a pequena columna, onde se ostenta o relogio despido, contemplando vagamente os dois edificios que ali se erguem, magnificos nas suas linhas architectonicas.

E extasiavamo-nos nas duas recordações do governo marechalício – a dos Correios[2] e a Delegacia Fiscal[3] – quando, subitamente, nos assaltou o brocardo corriqueiro: – ‘Por fóra, muita farófa, por dentro, mulambo só’…

A farófa e o mulambo

Porque, não sabemos se todos sabem, aquella soberbia toda exterior engolpha perfeitamente o dictado da giria: um dos edificios, o dos Correios, está sabidamente fendido; o outro, o da Delegacia, ficou com a cumieira intacta e até, parece empinado… São as galas da cidade: o que é bom, acceitável por fóra, é precario por dentro.

Talqualmente a ‘farófa’ e o ‘mulambo’…

Nos Correios: – 7

Mas o cidadão dos oculos, que nos despertára da indifferença, fôra, evidentemente, providencial. Plantáramo-nos ali para constatar realmente a hora. De chôfre, porém, verificámos que o nosso modesto chronometro guardava a hora official.

Méra questão climaterica impediu o tirassemos do bolso: estava tão frio… E comparámos: os Correios – não é o serviço! – estavam atrazados de 7 minutos. E pensámos:

– Quem sabe? Aquelle homem dos oculos…

Na Força e Luz: + 2

– Eis-nos decididos a empreender uma pequena reportagem chronometrica. Rodámos nos calcanhares e fômos nos estatelar frente á Força e Luz. Adeantava de 2 minutos.

Transpuzémos uma das embocaduras e caimos no saguão. Lá dentro tem outro relogio. Mas isso, sem deixarmos de nos identificar com a assistencia: não se destacasse um mortal tetrico de trabuco á cinta… Era, porém, a fatal Força e Luz de sempre: o n. 2 estava em desaccordo com o n. 1: adeantava de 3 minutos!

Saimos. Fômos, decididamente, adeante.

Na Matriz: + 8

Embarafustámos Ladeira[4] acima. Á Matriz! Um bacharel saltitante, na lomba estafante, pretende deter-nos, mas não o consegue. E, lépidos, estavamos logo nos defrontanto com a pre-historica Sé, testemunha austera, secular e silenciosa do ‘pinhão quentinho’, da roda do Divino…

Adeantava, e adeantava vantajosamente: augmentava de 8 minutos. Mas… caluda! Nada de irreverencias impensadas. Era a casa de Deus!

Na Intendencia[5]: ‘Eureka’!

Retrocedíamos. Vencendo a antiga rua da Ponte[6], estavamos, num apice, na de Bragança[7] – que magnifica via para desastres, pela sua confusão vehicular! Mas desciamo-la, resolutos, constatando o erro: poderiamos ter abreviado o caminho. Nada disso: a fatalidade nos impellia a um accidente…

Curados já então, da inadvertencia, galgámos a rua, a tradicional rua da Praia, deslisámos ela do Commercio[8], sempre apinhada, e estavamos, em tres tempos, defrontando o palacete da Praça Montevidéo[9]. Estava sympathico o executivo e legislativo da cidade. Por isso, talvez com a hora certa, num pendo [sic] verdadeiramente regulador. Salve-se, ao menos, isso…

Na Viação Ferrea[10]: + 3

E agora? A ‘gare’ da estrada de ferro. O Caminho Novo[11] é chronicamente hostilizante ao pedestre; mas… cavacos do officio. Ainda assim, com toda a prevenção, levámos um ‘baita’ encontrão de carregador desabrido e quase resvalámos num lodaçal – coisa vulgar ali.

Mas vencemos tudo, e alcançámos a estação, de má catadura,  num tumulto detestável de carroças e vozes. O relogio adeantava 3 minutos, em contraste, certamente, com a Estrada, algo atrazada sempre horariamente. Valha-nos, porém, as… apparencias.

Na Igreja das Dôres: + 9

Faltavamos, ainda, uma constatação. Era a Igreja das Dôres, o templo das torres dominadoras da cidade. Mas mudámos de tactica: embarcámos em dois electricos, um após o outro, senão pela duvidosa velocidade delles, pelo allivio das pernas, já bem castigadas. E quasi tivémos de nos arrepender: por um triz, e a pé, chegariamso talvez […] Mais ao alto, acima do templo e na torre á direita, o relogio, de configuração agradavel, adeantava-se de 9 minutos. Apenasmente: o ‘record’ da excursão. Venceu a Matriz por um… iamos dizer ‘goal’. Mas não: outro seio de Deus. Estava certo… adeantado.

Epilogo banal

O nosso ‘raid’ confortavemente installados em macios pneumaticos, attenuado, apenas, do Caminho Novo ao Quartel-General, por dois bondes que não valiam um, – o nosso ‘raid’ jornalistico comprovou a victoria da Intendencia. No torneio chronometrico, ao menos, tem ella o ‘record’ citadino assegurado.

Não sabemos se isso influirá, em alguma coisa, no seu desenvolvimento administrativo. Depois, não há muita correlação, em rigôr. Mas devemos proclamal-o, alto e bom som:

– Senhores! A nossa Municipalidade ‘está na hora’!”

Autoria desconhecida.

Correio do Povo, 18/07/1925, s/p. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.
Correio do Povo, 18/07/1925, s/p. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

Referências:

[1] Correio do Povo, 18/07/1925, s/p. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. A grafia original foi mantida.

[2] Atualmente, o Memorial do Rio Grande do Sul.

[3] Atualmente, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS).

[4] Atual rua General Câmara, que liga a rua da Praia na altura do Largo dos Medeiros à Praça da Matriz, onde se localizava a antiga Igreja Matriz de Porto Alegre.

[5] Atualmente, a Prefeitura antiga, ao lado do Mercado Público.

[6] Atual rua Riachuelo.

[7] Atual rua Marechal Floriano.

[8] Atual rua Uruguai.

[9] O atual largo à frente da Prefeitura antiga.

[10] A antiga estação férrea de Porto Alegre, mais ou menos onde hoje é o final da rua Júlio de Castilhos junto à Rodoviária.

[11] Atual rua Voluntários da Pátria.

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