O tempo na cidade moderna é, naturalmente, o tempo na modernidade: medido com precisão, regulando a vida urbana e o trabalho, ele precisa estar por tudo, onipresente, na forma do seu “olho”, o relógio, que observa condenando o desperdício de tempo, a “vadiagem”, o flanar. Para andar na cidade moderna tem-se que andar à americana, ou seja, com pressa. Afinal, tudo isso é sinal de um novo ritmo de vida, acelerado graças aos automóveis, aos bondes, aos telégrafos, à imprensa.
Porém, na Porto Alegre ainda meio provinciana, os relógios são ligeiramente desajustados como constatam os jornalistas que a percorrem: o deslocamento no espaço informa tempos diferentes.
“Quasi uma conflagração horaria…[1]
Seis relogios, dos pontos urbanos mais concorridos, em desaccordo
Pequena reportagem, num giro citadino
– Que é isso, moço?
– Nada, que eu saiba. De mim, estou apenas vendo a hora…
– Onde?
– Nesse relogio ahi!
– Está V. bem arrumado… Não perca tempo nisso!
Prologo natural
O dialogo era-nos proporcionado por um cidadão de oculos, traço macambuzio, mas espirituoso – qual se vê… – ali, á beira da estatua do Grande Chanceller, no Largo dos Correios e Telegraphos. Fixavamos a pequena columna, onde se ostenta o relogio despido, contemplando vagamente os dois edificios que ali se erguem, magnificos nas suas linhas architectonicas.
E extasiavamo-nos nas duas recordações do governo marechalício – a dos Correios[2] e a Delegacia Fiscal[3] – quando, subitamente, nos assaltou o brocardo corriqueiro: – ‘Por fóra, muita farófa, por dentro, mulambo só’…
A farófa e o mulambo
Porque, não sabemos se todos sabem, aquella soberbia toda exterior engolpha perfeitamente o dictado da giria: um dos edificios, o dos Correios, está sabidamente fendido; o outro, o da Delegacia, ficou com a cumieira intacta e até, parece empinado… São as galas da cidade: o que é bom, acceitável por fóra, é precario por dentro.
Talqualmente a ‘farófa’ e o ‘mulambo’…
Nos Correios: – 7
Mas o cidadão dos oculos, que nos despertára da indifferença, fôra, evidentemente, providencial. Plantáramo-nos ali para constatar realmente a hora. De chôfre, porém, verificámos que o nosso modesto chronometro guardava a hora official.
Méra questão climaterica impediu o tirassemos do bolso: estava tão frio… E comparámos: os Correios – não é o serviço! – estavam atrazados de 7 minutos. E pensámos:
– Quem sabe? Aquelle homem dos oculos…
Na Força e Luz: + 2
– Eis-nos decididos a empreender uma pequena reportagem chronometrica. Rodámos nos calcanhares e fômos nos estatelar frente á Força e Luz. Adeantava de 2 minutos.
Transpuzémos uma das embocaduras e caimos no saguão. Lá dentro tem outro relogio. Mas isso, sem deixarmos de nos identificar com a assistencia: não se destacasse um mortal tetrico de trabuco á cinta… Era, porém, a fatal Força e Luz de sempre: o n. 2 estava em desaccordo com o n. 1: adeantava de 3 minutos!
Saimos. Fômos, decididamente, adeante.
Na Matriz: + 8
Embarafustámos Ladeira[4] acima. Á Matriz! Um bacharel saltitante, na lomba estafante, pretende deter-nos, mas não o consegue. E, lépidos, estavamos logo nos defrontanto com a pre-historica Sé, testemunha austera, secular e silenciosa do ‘pinhão quentinho’, da roda do Divino…
Adeantava, e adeantava vantajosamente: augmentava de 8 minutos. Mas… caluda! Nada de irreverencias impensadas. Era a casa de Deus!
Na Intendencia[5]: ‘Eureka’!
Retrocedíamos. Vencendo a antiga rua da Ponte[6], estavamos, num apice, na de Bragança[7] – que magnifica via para desastres, pela sua confusão vehicular! Mas desciamo-la, resolutos, constatando o erro: poderiamos ter abreviado o caminho. Nada disso: a fatalidade nos impellia a um accidente…
Curados já então, da inadvertencia, galgámos a rua, a tradicional rua da Praia, deslisámos ela do Commercio[8], sempre apinhada, e estavamos, em tres tempos, defrontando o palacete da Praça Montevidéo[9]. Estava sympathico o executivo e legislativo da cidade. Por isso, talvez com a hora certa, num pendo [sic] verdadeiramente regulador. Salve-se, ao menos, isso…
Na Viação Ferrea[10]: + 3
E agora? A ‘gare’ da estrada de ferro. O Caminho Novo[11] é chronicamente hostilizante ao pedestre; mas… cavacos do officio. Ainda assim, com toda a prevenção, levámos um ‘baita’ encontrão de carregador desabrido e quase resvalámos num lodaçal – coisa vulgar ali.
Mas vencemos tudo, e alcançámos a estação, de má catadura, num tumulto detestável de carroças e vozes. O relogio adeantava 3 minutos, em contraste, certamente, com a Estrada, algo atrazada sempre horariamente. Valha-nos, porém, as… apparencias.
Na Igreja das Dôres: + 9
Faltavamos, ainda, uma constatação. Era a Igreja das Dôres, o templo das torres dominadoras da cidade. Mas mudámos de tactica: embarcámos em dois electricos, um após o outro, senão pela duvidosa velocidade delles, pelo allivio das pernas, já bem castigadas. E quasi tivémos de nos arrepender: por um triz, e a pé, chegariamso talvez […] Mais ao alto, acima do templo e na torre á direita, o relogio, de configuração agradavel, adeantava-se de 9 minutos. Apenasmente: o ‘record’ da excursão. Venceu a Matriz por um… iamos dizer ‘goal’. Mas não: outro seio de Deus. Estava certo… adeantado.
Epilogo banal
O nosso ‘raid’ confortavemente installados em macios pneumaticos, attenuado, apenas, do Caminho Novo ao Quartel-General, por dois bondes que não valiam um, – o nosso ‘raid’ jornalistico comprovou a victoria da Intendencia. No torneio chronometrico, ao menos, tem ella o ‘record’ citadino assegurado.
Não sabemos se isso influirá, em alguma coisa, no seu desenvolvimento administrativo. Depois, não há muita correlação, em rigôr. Mas devemos proclamal-o, alto e bom som:
– Senhores! A nossa Municipalidade ‘está na hora’!”
Autoria desconhecida.
Referências:
[1] Correio do Povo, 18/07/1925, s/p. Hemeroteca do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa. A grafia original foi mantida.
[2] Atualmente, o Memorial do Rio Grande do Sul.
[3] Atualmente, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS).
[4] Atual rua General Câmara, que liga a rua da Praia na altura do Largo dos Medeiros à Praça da Matriz, onde se localizava a antiga Igreja Matriz de Porto Alegre.
[5] Atualmente, a Prefeitura antiga, ao lado do Mercado Público.
[6] Atual rua Riachuelo.
[7] Atual rua Marechal Floriano.
[8] Atual rua Uruguai.
[9] O atual largo à frente da Prefeitura antiga.
[10] A antiga estação férrea de Porto Alegre, mais ou menos onde hoje é o final da rua Júlio de Castilhos junto à Rodoviária.
[11] Atual rua Voluntários da Pátria.