Mais uma vez o assunto dos porões alugados à população pobre surge na imprensa de Porto Alegre, e com razão. Com a escassez de moradias, muitas delas demolidas na onda de aberturas de avenidas modernas, morar no centro da cidade não era apenas precário como também caro.
Herança da arquitetura do século XIX, que procurava construir edificações elevadas relativamente ao solo, os porões também eram uma boa solução para adaptar as construções ao relevo acidentado da região central da cidade, compensando desníveis nos lotes. Esse detalhe pode ser observado em algumas das fotografias da reportagem.
Esta reportagem do Estado do Rio Grande detalha as condições de habitação de alguns destes porões, alguns com entradas exíguas, e quase todos com péssima iluminação e ventilação. Ora, em pleno movimento de sanear a cidade, transformando-a de cidade colonial em cidade moderna, a insalubridade das habitações era assunto das autoridades públicas.
“Um problema de grande interesse a resolver[1]
Os porões existentes em quasi todas as ruas da cidade, são alugados ás classes pobres por preços exorbitantes
Infectos e húmidos, onde a luz do dia não penetra, constituem elles um gráve perigo para a saúde de seus moradores
Em matéria de hygiene muito temos ainda por fazer em Porto Alegre.
Não queremos com isso ferir a Directoria de Hygiene, que, de dia para dia, vem se esforçando em pról da saúde pública.
Esse departamento, à frente do qual se encontra o professor Freitas e Castro, procura, cada vez mais, resolver o problema de saneamento desta capital, problema esse que viveu no mais completo abandono durante trinta annos.
Entretanto, como tem dito, por diversas vezes, a imprensa, a Directoria de Hygiene, por falta de pessoal para fazer face às exigências do serviço, o que, naturalmente, acarreta grandes transtornos.
Explica-se, desse modo, o retardamento de certos problemas de urgência a resolver por esse importante departamento do Estado.
A imprensa porto-alegrense vem prestando inestimáveis serviços à Directoria de Hygiene, na sua meritória obra de zelar pela saúde pública.
O ‘Estado do Rio Grande’ ocupa-se, hoje, de uma questão que está a exigir uma providência imediata. Trata-se dos porões existentes em quasi toas as ruas da cidade, e transformados em habitações.
Dado o seu elevado número, não nos foi possível visitar a todas essas habitações. Da inspecção que fizemos, a alguns delles, conseguimos os informes abaixo, que, naturalmente, vão merecer a atenção do público accostumado a vê-los exteriormente.
O porão de João Maria
À rua General João Manoel n. 405, a poucos passos da Duque de Caxias, está situado o porão do preto João Maria, no prédio n. 405.
João Maria, um modesto operário, habita esse local há muito tempo, com sua mulher e tres filhinhos.
Contou-nos a pobre mulher que, não podendo morar distante do centro, viram-se obrigados a ali residir, sujeitando-se a pagar 55$000 de aluguel por mês.
Com a licença de sua inquilina, penetrámos nesse porão, que mais se assemelhava a um subterrâneo. Ficamos assombaros pelo que acabávamos de observar.
A escuridão é ali profunda, não se enxergando um palmo adeante dos olhos. Não chega a ter em alguns logares a altura de um homem. O tecto que vem a ser o assoalho da casa de cima, é atravessado por grossas vigas de madeira, cobertas de teias de aranha.
O ar, nesse cubículo, é irrespirável e chega a causar náuseas. O chão é de terra, passando por elle uma extensa calha para o escoamento das aguas servidas.
É uma deshumanidade cobrar-se 55$000 por esse infecto porão, que é destinado sómente ao depósito de móveis velhos ou lenha.
Dali nos retiramos penalizados da triste situação dessa pobre gente, principalmente das três creancinhas, com essa habitação anti-hygienica.
Porões como esses, talvez em peores condições, se encontram em Porto Alegre e por bom preço, quando nem de graça deveriam consentir que fossem elles alugados.
O mercadinho de José Rodrigues
Não é dos peores o porão onde está situado o mercadinho de José Rodrigues, à rua General Portinho nr. 396 e 394, esquina da Duque de Caxias, fazendo frente para a praça General Osório.
Mas é em determinados pontos de pouca altura e sem condições de hygiene.
José Rodrigues, que é de nacionalidade espanhola, está mais do que habituado a residir em sua ‘casa-porão’. Parece até que não deseja trocá-la por outra moradia confortável.
Pudéra, não, pois ali reside, com sua esposa, há mais de 18 annos.
Foi nesse local que se tornou conhecido da vizinhança, e ali ganha a sua vida vendendo frutas.
O porão em questão possue quatro portas, todas fazendo frente para a rua General Portinho. Na rua Duque de Caxias existe somente uma abertura na parede, em forma de circunferência, e que serve para renovar o ar.
As duas primeiras portas são destinadas ao compartimento para a venda de frutas e as duas ultimas para um deposito de carvão.
Informou-nos José Rodrigues pagar por essa habitação sem conforto e nociva à saúde 100$000 mensaes.
Noventa mil reis por um subterrâneo
Um dos peores porões que encontrámos, em nossa visita, é o que está situado à rua General Bento Martins, a poucos passos da Duque de Caxias.
Está situado quási dois metros abaixo do nível da rua, e para nelle penetrar é necessário descer uma escada de vários degráos.
Esse compartimento é todo revestido de cimento, não possuindo fundos.
Na parte da frente, seu inquilino, Antonio Gomes da Silva, instalou um mercadinho, que denominou ‘São Jorge’.
Na parte dos fundos desse subterrâneo reside elle com sua mulher e três filhinhos, além de outras pessoas.
Esse porão é húmido. Das paredes cae agua, sendo o ar viciado. Não podemos compreender como as tres creanças resistem à humidade, principalmente na estação que atravessamos.
O aspecto desses pequenos entes é doentio, devido naturalmente ao logar que lhes serve de abrigo.
O proprietário do prédio todo, além de auferir bons lucros nos demais andares, alugou o subterrâneo pela importância de 90$000 por mês.
E as classes pobres, não tendo outros recursos, vêm-se na contingência de procurar os infectos porões, que lhes arruínam a saúde, para nelles residir.
Allegam alguns donos de prédios verem-se obrigados a assim proceder para aliviarem dos pesados impostos de que estão sobrecarregados pela municipalidade.
Por isso, são obrigados a transformar seus porões em habitações collectivas.
SEM AR E SEM LUZ!
Na mesma rua, a dois passos da Coronel Fernando Machado, na casa n. 527, existe um porão cuja entrada não tem mais do que um metro de altura.
Esse immundo cubículo foi dividido em diversos compartimentos, nelle residindo duas famílias, compostas de seis pessoas.
O porão em questão é completamente escuro. O chão é cimentado e as paredes não tem reboco.
Nos fundos, onde a luz do dia não penetra, foi elle alugado por 30$000 mensaes.
A parte da frente, que em immundicie nada fica a dever à dos fundos, é alugada a razão de 50$000 por mês.
Ottilia de tal é a proprietária do tal porão, que se nos afigurou o mais anti-hygienico.
Saimos dali horrorizados, a pensar que em Porto Alegre existem muitos dessa natureza e em peores condições.
E é de espantar que a maioria desses cubículos esteja situada no coração da cidade.
Opportunas declarações do professor Freitas e Castro
Em face do que nos foi dado observar sobre esses horrorosos porões, dirigimo-nos à Directoria de Hygiene, para ouvir, a respeito, a opinião do professor Fernando Freitas e Castro.
Sempre atencioso para com as pessoas que o vão procurar, e principalmente para com os representantes da imprensa, o illustre hygienista assim se expressou sobre essas habitações:
‘Temo uma infinidade de problemas de hygiene e de saúde pública a resolver. O problema dos porões transformados em habitações é um delles.
Tive já o cuidado de visitar um grande número delles e, nestas visitas, observei os mais clamorosos attentados à hygiene e a saúde publica.
Os chamados porões habitáveis estão reclamando uma providência enérgica.
Há, alugados, em quási todas as ruas de Porto Alegre, porões sórdidos, imundos, onde o ar é escasso e a ventilação deficientíssima, e onde a luz do dia não penetra.
Conheço um, no Navegantes, onde os habitantes não são capazes de dizer quando é dia. A luz do sól nelle nunca penetra.
O nosso código de construcção precisa ser reformado, e sei que a Directoria de Obras da Municipalidade está trabalhando nesse sentido.
O actual código permite a construcção de porões de qualquer altura, reservando para serem habitados os que tiverem no mínimo um pé direito de dois metros e vinte centímetros.
Isso é muito vago e dá margem ao abuso que está sendo observado, pois há muitos meios de burlar a vigilância.
Conheço porões com menos de dois metros e vinte centímetros que estão alugados, porém os proprietários não dão recibos aos inquilinos, para evitar qualquer prova, e fazem com que permaneçam fechados, para não despertar a attenção.
Para uma fiscalização eficiente, precisaria um numero de fiscais que ainda não temos, e é por isso que a Directoria de Hygiene ainda não iniciou o serviço de policia sanitária dos prédios occupados.
Ao nosso código é necessário que o porão inhabitável não tenha mais do que um metro e meio de altura, e que daí para cima só seja permitido com mais dois metros e meio.
Mas não é só o pé direito que interessa à autoridade sanitária. Esse, com as dimensões da área, assegura apenas um certo volume de ar. É necessária, porém a renovação desse ar e isso somente se consegue com uma ventilação efficiente.
A grande maioria dos porões, em Porto Alegre, possue péssima ventilação, mesmo os que têm pé direito suficiente para serem classificados como habitáveis.
Com cubagem de ar insuficiente, ventilação defeituosa, má iluminação e húmido o porão é alugado, com prejuízo dos ocupantes.
Assim é impossível a luta contra a tuberculose e outras moléstias, sobre as quaes exercem grande influência as condições de vida.
Entre nós muito há ainda a fazer, em matéria de hygiene e saúde pública, e o que temos conseguido com o valioso auxilio, sobretudo, da imprensa, encarado em confronto com o que está por fazer, é uma diminuta parcela.
Não falta estimulo entre os que trabalham na repartição sanitária do Estado, e nem o desejo forte de levar avante a meritória obra de defesa da saúde da população.
Entretanto, as dificuldades creadas pelo momento que atravessamos são tantas e de tal ordem que o pouco que se consegue é sempre com grandes sacrifícios’.
Foram essas as declarações que nos prestou o o professor Freitas de Castro em relação à presente reportagem”.
Autoria desconhecida.
Referências:
[1] Estado do Rio Grande, Ed00250, 14/08/1930, p. 06-7. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A grafia original foi mantida.