Não era raro encontrar notícias sobre assassinatos de mulheres por seus companheiros em função de motivos que, até bem pouco tempo, eram caracterizados como “passionais”. Hoje, porém, sabe-se que as razões por que se cometem feminicídios, ou seja, o assassínio de mulheres por serem mulheres, tem muito mais relação com a sensação de posse do homem sobre a mulher do que outra coisa.
Nesta reportagem do Correio do Povo de 6 de março de 1929, noticia-se uma dessas manifestações de violência contra a mulher, e sua leitura dá pistas sobre a forma que esse tipo de crime era visto naquele tempo.
O homem que se sentia traído, mesmo sem ter alguma prova de que a esposa tinha um amante, era descrito em tom elogioso como antes de tudo um trabalhador e provedor denodado no casamento. A disciplina do trabalho era a virtude que dignificava os pobres, afastando-os do vício da bebida e do crime, especialmente para alguém que morava na mal afamada Colônia Africana[1], área à época periférica e que trazia no nome a estigmatização de seus moradores originários, em grande parte ex-escravizados e libertos. Pode-se ver a rua Esperança, atual Miguel Tostes, hoje situada no bairro Rio Branco, nesta planta de Porto Alegre de 1888:
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A mulher, por sua vez, era mostrada como uma elegante dona de casa, em fotografia destacada no jornal. Talvez um cherchez la femme[2], como se a beleza e o comportamento dela despertasse o ciúme que justificaria o crime.
Por fim, esse tipo de reportagem não raro era ilustrado com uma foto do local do crime, o que ajuda a entender um pouco como era a cidade àquela época. Nela, vê-se uma casa do tipo mais simples, ou seja, de porta e janela, estreita e térrea, indicando a condição humilde do casal. Esse tipo de habitação pode ter sido muito comum em espaços da cidade como a Colônia Africana.
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“D. Elvira Freire Pantaleão, esposa do tresloucado autor da tragedia.” -
“A casa 761, da rua Esperança, onde se desenrolou o drama passional.”
“Mais um drama passional abalou, hontem, o espirito da população[3]
Um marido, julgando-se trahido pela esposa, alvejou-a a tiros, detonando, depois, a arma em pleno peito
Os antecedentes do crime e outros pormenores colhidos pela nossa reportagem
A policia não compareceu ao local, desconhecendo, por completo, essa occorrencia
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Recem-iniciado o mez de março e já a chronica policial registra mais um drama passional, o segundo do corrente anno.
Não ha muito, no começou deste anno, em plena rua da Praia, desesperado e allucinado com o despreso de sua antiga amante, um homem alveja uma mulher e, quando a vê tombar, desamparada, entre curiosos, volta contra a propria cabeça a arma ainda fumegante, detona=a e roda, sobre a calçada em estado gravissimo.
Ella, que era uma infeliz decaida, veiu a fallecer alguns dias depois, e elle, tendo conseguido salvar-se, está sendo devidamente processado.
Agora é um esposo trahido que, depois de uma série de lutas domesticas com a companheira, na imminencia de separar-se della, investe-a, desvairado, com um revólver com que a fere gravemente para, com a mesma arma tentar suicidar-se.
No curto lapso de tempo de dois mezes apenas, como se vê por duas vezes a paixão mancha de sangue a chronica da cidade.
Narremos, porém, a tragedia de hontem, que tão fortemente repercutiu no espirito publico, desde os primordios da vida dos protagonistas.
Quatorze annos de vida conjugal, sem dissabores
O Sr. Eduardo Pinto Pantaleão, pelo anno de 1912, contrahiu nupcias nesta capital com d. Elvira Freire Pantaleão, por quem sempre foi um desvelado desde que a conhecera.
Jamais encontrou obstaculos para fazer-lhe as vontades e na luta pela vida mostrava-se um batalhador infatigavel para cumprir os seus deveres de esposo.
No commercio local, o sr. Eduardo Pantaleão empregou a sua actividade longe tempo em casas importantes e sempre se houve a contento de seus patrões.
Na vida intima de casal jugava-se feliz e, afora essas rusgas communs entre marido e mulher, nada se apontava em seu desabono.
Por outro lado, d. Elvira Pantaleão satisfazia a espectativa do esposo, que a tratava carinhosamente, livre de quaesquer desconfianças.
Os proprios parentes do sr. Eduardo Pantaleão prezavam d. Elvira e contra ella não tinham a mínima prevenção. Assim nesse ambiente de cordialidade passou o casal Pantaleão doze longos annos, vivendo um para o outro, felizes, despreoccupados.
Nunca tiveram filhos, porém tudo indicava que não eram infensos a esse prazer.
A prova é que criavam uma menina, com toda a affeição e affecto de verdadeiros paes.
Longe dos olhos, longe do coração
Depois de quatorze annos de vida conjugal sem dissabores, como acima narramos, o sr. Eduardo Pinto Pantaleão, por interesses pecuniarios, em 1927, resolveu sair de Porto Alegre para aceitar logar na Granja da Brigadeira, em S. Sebastião do Cahy, onde iria ser mais bem remunerado.
Tomou esse destino, mas deliberou deixar a familia, aqui, residindo, à rua Esperança n. 761, na modesta casa cujo clichê estampamos.
Arrumados os seus negocios em Porto Alegre, rumou ao Cahy, ficando nessa localidade até os principios deste anno.
Apezar da distancia que o separava da familia, o sr. Eduardo Pantaleão tinha a esposa sempre em mente e, durante o mez, a visitava, pelo menos tres vezes.
De par com essa assistencia periodica, provia-lhe as necessidades, primando em dar tudo, a tempo a e ahora, a d. Elvira.
Nada disso, entretanto, evitou que se confirmasse este velho refrão: Longe da vista, longe do coração.
E foi o que, realmente succedeu á esposa do sr. Pantaleão.
Aos poucos, segundo informações colhidas pela nossa reportagem, d. Elvira começou a arrefecer seu ardor pelo marido e, quando este a procurava, não deixava de notar qualquer differença.
A principio, o sr. Eduardo Pantaleão, dissimula certas desattenções da esposa, mas, com o tempo, foi se sentindo ferido no seu amor proprio.
Vieram, então, as desconfianças.
Dahi, por deante, a estadia do sr. Pantaleão em Porto Alegre, era um martyrio para elle e para a esposa, que já estava dominada por outro affecto, que a tentava conduzir para o caminho da desonhra.
Voz do povo, voz de Deus
Torturado pelas suas desconfianças, o sr. Eduardo Pantaleão começou a sentir o moral abatido, quando percebeu que o povo já se occupava da vida de sua esposa, accusando-a de amores illicitos com o dono de um estabelecimento industrial, que fica quasi fronteiro á sua casa.
Esa nova augmentou as desillusões do marido que se julgava trahido, enfraquecendo-lhe ainda mais o animo.
Em parallelo com esse desespero, comelou a se gerar no espirito do sr. Pantaleão
A idéia da vingança
Trabalhado, então, por esse desejo irresistível, resolveu elle abandonar a Granja da Brigadeira, em S. Sebastião do Cahy, para se estabelecer novamente nesta capital e, assim, poder trazer sob vistas a sua esposa.
Pondo em execução esse plano, o sr. Eduardo Pantaleão, há um mez, regressou definitivamente para Porto Alegre, onde se encontrava ainda deslocado, vivendo de algumas economias que possuía.
Voltando o casal a viver em contacto diario, as desconfianças attingiram ao auge, ao ponto de d. Elvira Pantaleão tomar a iniciativa de constituir o sr. Fernando Kersting seu advogado para disquita-la [sic] do marido, por meio amigavel ou mesmo litigioso.
Sabendo disso, o sr. Eduardo fortaleceu as suas convicções e não tardou a por em pratica a idéa que o trabalhava.
O acto de desespero
Pela manhã de hontem, o sr. Eduardo Pantaleão, após o café, saiu de casa, rumando para logar ignorado.
Depois de umas duas horas de ausencia, voltou elle, às 8,45, visivelmente perturbado, entrando logo a se altercar com d. Elvira, sua esposa, a quem accusava, de momentos antes, ter recebido o amante em sua propria casa.
Contestada essa grave affirmativa, o sr. Pantaleão redobrou a colera, saccando de um revólver para completar o seu acto de desespero.
Firmando, então, o alvo, deu um tiro em sua esposa, e, em seguinda, voltou a arma contra si proprio, detonando-a em pleno peito.
Consumado esse duplo delicto, as victimas foram soccorridas por pessoas da vizinhança que se apressaram a comunicar a occorrencia á Assistencia Publica.
Momentos depois, o sr. Pantaleão e d. Elvira eram transportados em auto-ambulancia para o posto central da Assistencia e ali medicados convenientemente pelo dr. Rache Vitello e doutorando Francisco Marques Pereira, auxiliados pelos enfermeiros Salatino e Wolkmer.
Como o estado de ambos apresentasse certa gravidade, foram elles recolhidos á Santa Casa de Misericordia.
Os ferimentos recebidos pelas victimas
O sr. Eduardo Pinto Pantaleão apresentava um unico ferimento com orificio de entrada na região mammaria esquerda e d. Elvira Freire os seguintes: um na região infra clavicular esquerda, outro na fossa infra espinhosa e ainda outro no concavo axillar esquerdo.
A policia no desconhecimento dessa tragedia
Logo que a nossa reportagem teve conhecimento dessa tragica occorrencia, poz-se em um campo para colher detalhes, indo ao local e em outros pontos.
Concluido o nosso serviço de informações ‘in loco’, dirigimo-nos á delegacia do 3º districto, para nos inteirarmos das providencias da policia, mas, ali, tudo se ignorava sobre esse facto delictuoso.
Eram, então, 18 horas e a tragedia se passara pela manhã.
Extranhando, por isso, a peita [sic], incontinenti, por que o districto, insistimos em referir o crime, para ser se realmente estavamos contando uma novidade á policia.
Confirmou-se a nossa suspeita […], por que o posto da Colônia Africana, subordinado a delegacia do 3º districto e a quem competia iniciar as diligencias, tambem tudo ignorava.
Em vista dessa pasmaceira, desenvolvemos esta reportagem para informar ao publico e, principalmente á policia, que sabe menos do facto do que o povo que chegou a commenta-lo durante o dia.”
[1] Território negro de Porto Alegre que se formou a partir da segunda metade do século XIX abrigando negros ex-escravizados e libertos. Hoje, compreende os bairros Bom Fim, Rio Branco e parte do Mont’Serrat.
[2] Expressão famosa na virada do século XIX para o XX, quer dizer “procure a mulher”, dando a entender que uma mulher sempre estaria na origem de um ato criminoso.
[3] Correio do Povo, 06/03/1929. Hemeroteca do Arquivo Histórico Municipal Moysés Vellinho. Autoria desconhecida. A grafia original foi mantida.
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